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domingo, 29 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (VII)






Ontem foi dia de dolce far niente. Quer dizer, cumpri com as tarefas domésticas rapidamente e como tinha me programado em ir até o Posto de Saúde para fazer a vacina dos velhos, digo, da gripe, antes consultei o portal da Prefeitura. Queria descobrir o melhor local para resolver a questão. Encontrei um aviso de que o sistema de saúde não dispõe de quantidade suficiente para atender a demanda. Talvez na próxima semana. Talvez.

Plano desfeito, Legião Urbana e Dire Straits romperam o silêncio que a quarentena propaga  como se não bastasse a opressão que é estar isolado do mundo. No edifício em que estou residindo reina o sossego, não vejo movimento, o elevador parece condenado ao imobilismo – possivelmente alguns moradores optaram pelo autoexílio no interior do município, em propriedades rurais.

Como herdeiro da aristocracia bovina falida (segundo definição certeira de Rogério Castro, que Deus o tenha!), não me sobrou um palmo de terra para ser invadido pelo MST. Melhor assim. O fato básico é que, no passado, o latifúndio familiar sofreu várias reformas agrárias... na cama! Cada ancestral teve entre oito e quinze filhos. Quando chegou a minha vez de desfrutar da riqueza familiar, sobrou pouco – e o que me coube “torrei” na primeira oportunidade (contarei essa história em outro momento).

Meus antepassados também dilapidaram o patrimônio familiar com outras “necessidades básicas”. Alguns episódios, raramente comentados em voz alta (mas que fazem parte do folclore doméstico e domesticado), envolvem mesas de jogo, alcoolismo e a célebre dupla vencedora: “cavalos lerdos e mulheres ligeiras”. Enquanto a esposa e os filhos ficavam trancados dentro de casa (para o bem da moral e dos bons costumes), o “provedor do lar” costumava visitar a amante; em alguns casos, as amantes. Ter e poder sempre foram notas de distinção de classe. Simultaneamente, a hipocrisia do pacto social exigia discrição e submissão. Confirmando o zeitgeist, Conceição, personagem do conto Missa do Galo (Machado de Assis), jamais se rebelou contra as ausências semanais do marido (dizia ir ao teatro), evento que o narrador chama de eufemismo em ação.




Paulo Setúbal (1893-1937), membro da Academia Brasileira de Letras e pai do Olavo Setúbal (fundador do banco Itaú), residiu no Planalto Catarinense por curto período (1918-1919).  A gripe espanhola estava fazendo estragos em São Paulo e aqui o escritor encontrou o oásis da minha vida, conforme declara em seu livro de memórias, Confiteor (1937). Nessa narrativa ele insinua, perdão, afirma que foi em Lages que aprendeu a jogar cartas, a beber e a ter contato com as moças “de vida fácil”. Pois é, se non è vero, è bem trovato.

Márcio Camargo Costa, possivelmente quem melhor interpretou o espírito inquieto dos habitantes de serra'cima, descreveu uma parte dos causos emblemáticos da região nos três livros de contos que publicou. Ficou nos devendo uma história do “maior corpo de baile do Brasil”, relatos sobre a ascensão e queda do ciclo da madeira, período em que ocorreram algumas das maiores maluquices possíveis na vida de quem ficou rico da noite para o dia e perdeu o patrimônio na mesma velocidade. Destaque para o sujeito que alugava avião para frequentar  sozinho ou na companhia de alguns amigos  os cabarés de Buenos Aires. Terminou a vida sem um tostão furado.  

Da riqueza familiar só me sobrou o sobrenome. E algumas lembranças. O que não aconteceu, invento.    

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