Helder Macedo esteve em Florianópolis, no dia 07 de outubro de 2010. Naquela manhã, chovia à cântaros na "ilha dos casos e ocasos raros". O uso da expressão "chovia à cântaros", um pouco antiga, apesar de pertinente, não deve ser relacionada, obviamente, com os 75 anos do ilustre autor escritor português. As características que o definem são outras: a voz forte, quase de locutor esportivo, o corpo excessivamente magro, as mãos inquietas (instrumentos usados para construir pontes entre o imaginário e a lucidez), o humor afiado, corrosivo, oscilando entre a contenção britânica e o escracho colonial. Além disso, como que a dizer que está a léguas de distância da linguagem asséptica das Universidades, possui um bom arsenal de palavrões. E, para surpresa dos espectadores da palestra que proferiu naquela ocasião, usou alguns deles em alto e bom tom.
Em uma sala completamente lotada, falando um português que, embora inteligível (na maior parte do tempo), não parecia ser aquele que é falado por aqueles que o estavam escutando, destruiu alguns mitos sobre a vida e a obra de Luiz Vaz de Camões. Misturando observações refinadas e "histórias da vida privada", não economizou sarcasmo e ironia sobre os hábitos comportamentais do poeta – e seus contemporâneos. Amparado em quatro cartas atribuídas ao Camões, em lugar de manter a tradição do elogio poético (que costuma perdoar a todos os pecados daqueles com quem há identificação ou idolatria), Macedo fez questão de demonstrar, entre tantas coisas, que o autor de "Os Lusíadas" era cliente assíduo dos bordéis lisboetas.
Para quem teve o prazer de ler algum dos romances de Helder Macedo, esse tipo de observação, que desconstrói a mitologia literária, não é novidade. Trabalhando com as margens do campo literário, sem esquecer que a política está impregnada em cada ato humano (ou ficcional), o autor de Vícios e virtudes sempre se mostrou um rude iconoclasta. Em razão desse desapego à hagiografia, ouvi−lo discorrer sobre os defeitos (ou qualidades, depende do ponto de vista) de um grande escritor é uma aventura fantástica, dessas que estão pontuadas por surpresas, por pequenos prazeres e pelo inusitado.
Na sociedade do espetáculo, infelizmente essa estratégia gera as piores expectativas: em alguns momentos aqueles que estavam participando do evento não puderam evitar se contorcer nas cadeiras, como se estivessem impacientes para escutar mais uma leva de fofocas sobre as intimidades literárias. E que não vieram, não era esse o propósito, não era essa a tarefa a que Helder Macedo havia se proposto. Literatura é outra coisa, reino de outro mundo.
No período da tarde, a programação do Colóquio Helder Macedo permitiu ao publico (que diminuiu exponencialmente) compartilhar a visão de três especialistas na obra do ilustre escritor português. Sentado no meio da platéia, ele teve paciência e controle para suportar a saraivada de elogios, algumas vezes de cabeça baixa, outras vezes mexendo em uma pasta, a maior parte do tempo parecendo querer estar longe, apesar de isso ser impossível. Então, em lugar de dormir (o que seria perdoável e nada estranho), ele erguia os olhos, olhava para o palestrante da vez, esboçava um sorriso e se distraia outra vez fazendo anotações, imaginando a vida a escorrer fora daquelas quatro paredes que o aprisionavam.
Quando solicitaram que voltasse a ocupar um lugar na mesa, com polidez e tato agradeceu a sessão de exegese e contou algumas pequenas histórias pessoais. Nesse momento, apenas por um instante, o humor foi substituído pela melancolia. Mostrando que ainda estava a cultivar luto pela morte de vários amigos, observou que os últimos três anos lhe foram muito difíceis. Sem manifestar clemência com a morte, não deixou passar em branco a oportunidade de criticar aqueles que se foram: Isso não se faz com aqueles a quem queiramos bem. Em outras palavras, foi falta de cavalheirismo dos mortos partirem, sem esperá−lo. Ato contínuo, como que a colocar tampa no caldeirão dos ressentimentos, leu alguns poemas, forma sofisticada de declarar publicamente a saudade e a perda emocional.
Talvez seja isso, a solidão, que o fez vir ao Brasil mais uma vez. Difícil arriscar um prognóstico, inclusive porque parte da festa estava atrelada ao lançamento de um novo velho romance, Natália, publicado em Portugal em 2009 – alegando problemas gráficos, o livro ausentou−se do evento.
Quem deu o ar da graça, ao final da tarde, foi o sol. Depois do aguaceiro, o céu se abriu. E fez um calor abafado, daqueles que lembram África. Ou Partes de África – romance em que Macedo conduz o enredo em banho−maria, muita digressão, muitas frases que querem dizer o contrário do que a soma de palavras parece sugerir, a coerência mantida pela corda que une os vários fragmentos, muitas histórias que se dispersariam se não houvesse algo para controlá−las. Enfim, a velha lição de mitologia grega, o fio da meada nas mãos de Ariadne.
Para completar a brincadeira, como se fosse um jogador de pôquer, desses que somente sentem a adrenalina do jogo quando blefam, Helder Macedo apostou alto no mecanismo de sedução do narrador intrometido, em primeira pessoa, livremente inspirado em Machado de Assis (que, por sua vez, copiou Lawrence Sterne). Como "original é quem copia primeiro" e os direitos autorais caíram em domínio publico, a história que o narrador nos conta (misturada com a do personagem Luis Garcia de Medeiros e as crueldades da Pide - antes de 25 de abril de 1974) traça um painel bastante crível do colonialismo português em sua forma mais horrorosa. Mas, esse andamento narrativo está em nível muito distante das neuroses de António Lobo Antunes, em que o monologo interior substitui a ação, inclusive porque a literatura praticada por Helder Macedo é de outro naipe e distante do imobilismo.
Talvez a melhor recomendação para quem queira conhecer Helder Macedo mais de perto seja ler Pedro e Paula, romance que dialoga com Esaú e Jacó (Machado de Assis outra vez!), e que reforça a idéia (como diz um personagem do filme Le premier jour du reste de ta vie. Dir. Remi Bezançon, 2008) de que a família é uma máquina de moer sentimentos.
Pedro e Paula festeja os livros complicados, desses que manejam tramas desencontradas. Em muitas passagens percebe−se o flerte com o a−pós−o−modernismo: entre tantas sacadas e sacanagens, Sam, o pianista do Ricky’s Bar, se desloca de Casablanca e, diante de platéia cativa, toca A Portuguesa – se fosse As time goes by seria a mesma coisa. O tempo e o espaço (Lourenço Marques, Lisboa, Paris, Londres) são fluídos.
Pedro e Paula são irmãos gêmeos e, passada a adolescência, encontramos ambos os dous morando na capital portuguesa, pretextando estudar - embora Pedro prefira outras distrações. Noves fora zero, ao correr da narrativa o leitor vai sendo informado sobre como não administrar as diferenças afetivas. Quem conta esse drama é outro narrador intrometido – que, em determinado momento, não consegue se segurar na função elementar de ordenar o andamento narrativo e invade o texto para se transformar em personagem.
Pedro ama Paula e Paula não ama Pedro. Aliás, Paula ama muita gente, vários são os seus companheiros na troca de humores e gozos. Pedro não é um deles, a idéia de se deitar com o irmão lhe causa asco, prefere homens mais velhos, menos apressados. Em tom de fado, daqueles bem tristes, o ressentimento e o desejo incestuoso culminam em estupro. E ódio. E ruptura fraterna. Tudo isso sem descrições apelativas, sem precisar imprimir a ignomínia em out−door.
Enfim, se fosse necessário definir a prosa de Helder Macedo em uma única palavra, "elegante" seria uma tentativa razoável, pois "o velho" pratica um estilo que está fora de moda, o andamento musical em lugar do excesso, a ironia substituindo o discurso moralista, a história portuguesa em tom farsesco, quase operístico. Na última frase da última página de cada um dos seus romances, o leitor comprova que talento combinando lágrimas e risos resulta na embriagues que a ficção, somente a ficção, é capaz de fornecer.
Ao iniciar da noite, mastigando salgadinhos frios, provavelmente cansado por todo aquele exagero, Helder Macedo sorriu, distribuiu autógrafos, foi ator. E, não é difícil imaginar isso, deve ter suspirado de alivio quando tudo acabou.
De minha parte, voltei para casa, com dois presentes: um forte aperto de mãos e uma pilha de livros autografados.
Deve ser fascinante a leitura mesmo. Vou colocar na minha lista de prioridades "conhecer o Helder". Tocar em temas tão perturbadores de um forma tão singular já faz por merecer a leitura.
ResponderExcluirHenrique: Sou um fã de Helder Macedo. Até as (raras) coisas ruins que ele escreveu me parecem geniais! Além disso, tenho enorme dívida com o "velho": sem "Pedro e Paula" minha (enorme, segundo o pessoal da banca) tese de doutorado (que misturou Milton Hatoun, Helder Macedo e Machado de Assis) não teria sido possível.
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