Durante anos, lá nos fundos de A Sua Livraria, os finais de manhã eram reservados à conversa fiada. O cenário não apresentava muitos elementos׃ João Rath atrás da escrivaninha, algum amigo sentado no sofá. Enquanto João conferia os pagamentos bancários do dia, o visitante lia os jornais. Muitas vezes João era interrompido por comentários indignados sobre alguma coisa tola, dessas que jamais vão alterar a ordem do mundo – apesar de estarem estampadas nas manchetes do dia. Ele parava o serviço, fazia de conta que não estava sendo incomodado, e, como nunca entrava em divididas ou sustentava posições radicais, dizia alguma coisa contemporizadora. Em seguida, voltava aos cálculos. Normalmente, era o suficiente para restabelecer a ordem.
Claro que alguns visitantes (Lélia Pamplona, Sergio Ramos, Ari Martendal, Valmir Nunes, Edézio Caon, Alcione Wagner, eu, entre outros) não se contentavam em ser abandonados alegremente. Em caso de desespero, principalmente quando o Mestre não atendia as nossas carências afetivas, assuntos não faltavam. Bastava recordar o antigamente, os bailes no Quatorze, o "footing" nos tempos de "A voz da cidade", os piqueniques que deixaram saudade, momento em que ninguém consegue se controlar quando percebe que o tempo engoliu a toalha xadrez, centenas de formigas e uma garoa fina no meio da tarde.
João, chateado pela quebra da rotina, alegre por poder dialogar com os amigos, esquecia – por algum tempo − a administração da livraria, e se dedicava ao doce prazer de "jogar conversa fora". E contava histórias fantásticas (algumas se repetiam, mas isso nunca foi importante, parece até que adquiriam um sabor renovado, muito mais delicioso).
Essa imagem pertence a um mundo que se perdeu. A livraria não existe mais. João (um "rath" de livraria, como ele gostava de trocadilhar) se aposentou. Alguns dos amigos que se encontravam na livraria também já foram embora. Essa é a parte chata do existir. No entanto, o que importa neste momento é outra coisa: João, apesar de alguns problemas de saúde, continua forte, hoje é o seu aniversário, 87 anos.
Há uma coincidência estranha no fato de um livreiro ter nascido em um dia que a literatura mundial considera especial. Hoje é também o Bloom’s day, "Dia de Bloom", dia em que os desencontros entre Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus são narrados nas oitocentas e tantas paginas do romance "Ulisses", escrito por James Joyce.
Entre Dublin, na Irlanda, e Lages, no Brasil, diferenças inquestionáveis. Mas também há esse elo, essa forma pouco ortodoxa da literatura estabelecer um ponto de contato entre a vida e a ficção.
Hoje é dia de ir abraçar João, aquele que sempre considerei meu avô postiço – e que sempre me tratou com o carinho e paciência. Hoje é dia de dizer, em voz alta, sem medo, que ele é uma parte muito especial de nossas vidas (na minha, na de sua esposa, na de seus filhos e netos, na dos amigos). Hoje é o dia de João: John’s Day, ou melhor, Rath’s day.
Alguns "maus elementos" da turma (da esquerda para a direita): João Francisco Regis Rath de Oliveira, Danilo Thiago de Castro, Nereu de Lima Goss, José Ari Celso Martendal, Raul José Matos de Arruda Filho. Na parede, um retrato de mocidade, a nos lembrar a passagem - inexorável! - do tempo.
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