Sagrada Família, o último romance de Zuenir Ventura, deve ter causado calafrios em alguns jovens escritores brasileiros. Como é que o velho conseguiu manejar com tamanha leveza um tema tão áspero? − devem ter se perguntado os ressentidos. No mesmo coro, os incompetentes.
Nos anos 40, em uma cidade fictícia, Florida, situada na região serrana do Rio de Janeiro, Sagrada Família relata alguns episódios da vida sexual de algumas mulheres. Família comum – mas não muito. Manuéu (assim mesmo, com "u" final), o narrador, inicia o relato aos nove anos. Depois há um interregno. O texto é retomado quando ele está com 13 anos. O desfecho da história ocorre muitos anos depois.
Todo esse distanciamento temporal possibilita um dinamismo muito interessante, concentrando a narrativa na essência e, com precisão cirúrgica, descartando todos os detalhes assessórios. Essa estratégia poderia resultar em texto seco, árido. Poderia. Felizmente isso não aconteceu. Apesar do tom de drama, a mão narrativa não descartou o humor. Algumas cenas (Viuvinha, noite de núpcias), retratos de época, são impagáveis – e hilárias.
O enredo principal focaliza inicialmente Tia Nonoca, mãe de Cotinha e Leninha, mulher ressentida que gasta a existência pregando a moral e os bons costumes. Pura fachada. No final de algumas tardes, a viúva relaxa com a injeção na Pharmacia Canuto. Depois, como se fosse uma câmera de cinema, a narrativa se desloca para outras tragédias humanas. Talvez a mais impressionante seja a que envolve Cotinha e Douglas Kendery. O sujeito é policial, alcoólatra, mulherengo, e, seguindo a regra não escrita do comportamento social brasileiro, adora demonstrar o seu amor marital batendo na esposa.
Tamanho afeto não poderia resultar em final feliz. Estranhamente, esse é apenas um item menor de uma desgraça maior. Quando os fios soltos da narrativa são amarrados no último capitulo, o leitor percebe que o horror é muito mais terrível do que qualquer expectativa. A morte de Douglas, depois de três anos de casamento, ocorre por motivos alheios ao ambiente familiar. Isso não impede que o número de mulheres frustradas afetiva e sexualmente continue a se multiplicar como se isso fosse natural.
É isso que o livro quer mostrar. É isso que o romance quer denunciar. Esse painel provinciano (repleto de intrigas sexuais), montado diante dos olhos do leitor, permite que o narrador conduza dezenas de personagens: que entram e saem de cena com rapidez − coadjuvantes não devem atrapalhar o desempenho dos protagonistas.
Antes do término da narrativa, há a incrível história de Leninha e Tony. Impedidos de levar adiante o relacionamento quase adolescente, eles se reencontram em 1996 – cerca de 50 anos depois. Velhos e apaixonados, eles se casam – metáfora otimista do amor que vence todos os obstáculos.
Dominando os pormenores históricos e sociais, pincelando o texto com detalhes e produtos comerciais característicos da era Vargas, Zuenir Ventura não negou prazer ao leitor. Narrativa saborosa, Sagrada Família, como se fosse uma metáfora da redenção familiar, possue sabor de quero mais.
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