O prédio está situado em uma avenida
bastante movimentada. Duas pistas são divididas por um rio. Do lado de lá, tráfego intenso.
Automóveis e motocicletas que se dirigem para o centro da cidade ou para um dos
principais bairros. Na outra pista, a situação é mais calma. O fluxo
do trânsito leva na direção de algumas áreas residenciais.
Como se trata de terreno plano (ou quase
isso), quem pratica exercícios físicos costuma frequentar a região. Da janela
do escritório é possível acompanhar parte da agitação. Quer dizer, era. Com a ameaça de fim do mundo,
o povo diminuiu a presença nas ruas. Sobraram apenas os atletas de ocasião que,
sozinhos ou em grupo, correm na direção do nada com um entusiasmo que deixaria
os maratonistas quenianos com inveja.
Uma infinidade de personagens e
situações: casal passeando com o(s) cachorro(s), ciclistas e suas roupas feias,
homens de meia idade que usam as caminhadas como desculpa para tomar umas duas
doses de uísque depois, mulheres de meia idade que se sentem ameaçadas por
garotas na faixa dos vinte e poucos anos, rapaz que acompanha a namorada
(possivelmente sonhando com outro tipo de exercício), namorada do rapaz
(provavelmente pensando em se livrar do idiota o mais rápido possível), sujeito
que acredita que caminhar pela avenida é uma espécie de desfile de moda (usa
roupas de grife), pai e filho adolescente tentando criar algum tipo de laço
afetivo, pai ensinando a filha a andar de bicicleta, quatro ou cinco amigas que
resolveram caminhar juntas, homem que tomou o caminho errado e quase foi
engolido pela multidão.
Estou com saudades daquela senhora de
roupas coloridas e com o peso, digamos, um pouco acima do recomendável. Lépida
e faceira, caminhava todos os dias, no final da tarde, sempre conversando em voz
alta com alguma amiga.
Também era constante presença – mas no
período da manhã – um senhor com aspecto de ex-fumante. Possivelmente ouviu do médico
a ameaça definitiva: ou você faz algum tipo de exercício físico ou morre!
Considerando a alternativa, o sujeito decidiu caminhar. Não há felicidade em
seu olhar.
Estou preocupado. Onde estão essas
pessoas? Será que estão todas confinadas, esperando a crise passar? Ou mudaram
hábitos e agora fazem algum tipo de ginástica dentro de casa? De forma
complementar, podemos perguntar se as lojas que trabalham com equipamentos para
academias domiciliares estão batendo metas e celebrando recordes de vendas? Não
tenho respostas para essas perguntas e centenas de outras. O que sei é que, em
momentos de crise, alguém sempre encontra uma maneira de transformar o sofrimento
alheio em dinheiro. Dizem que isso se chama empreendedorismo, aproveitar as
oportunidades, realizar o negócio, essas sutilezas semânticas que emolduram o
capitalismo. Piratas e corsários também não tinham escrúpulos.
Cerca de um mês atrás, um casal de
mochileiros ganhava alguns trocados com malabarismos na esquina da avenida. Jovens,
magros, roupas de cores berrantes, falando espanhol – características que podem
chamar a atenção dos xenófobos. Fico me perguntando se eles estão bem, se estão
se alimentando com alguma frequência, se encontraram algum abrigo?
A cidade está quase deserta. O medo,
monstro mitológico, está corroendo aqueles que não conseguem entender o
significado da quarentena. O ovo da serpente pode eclodir a qualquer momento,
seja como fenômeno messiânico, seja como totalitarismo político. A Idade Média
é aqui – e agora.
(continuo em outro momento)
Realmente estamos diante da Idade Média Contemporânea. Fico curiosa em saber quando começará a fogueira e quem será vó perseguido. Gostei da leitura! Abraço!
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