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terça-feira, 19 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LVIII)


Decalcomania, 1966 (René Ghislain Magritte, 1898-1967)


As assombrações fazem parte da vida do Outro. É isso o que gostamos de dizer. Doce ilusão. Quando menos se espera, os fantasmas acenam para nós. Ninguém está a salvo. Desta vez foi comigo. Nada muito importante. Mas, de qualquer forma, um sinal de que pode haver alguma coisa diferente rondando por ai.

Muitas pessoas estão relatando – nas redes sociais – que a pressão produzida pelo regime de quarentena está criando um pouco de inquietação. E isso se manifesta de várias maneiras. Ansiedade, alcoolismo e sonhos assustadores, por exemplo.

Como gosto de ficar em casa, estou em regime de abstêmia e as minhas noites de sono (nos últimos três meses) são absolutamente aborrecidas, pouco posso falar sobre essas sensações. Durmo entre seis e oito horas. Às vezes levanto no início da manhã para ir ao banheiro. Resolvido o problema, volto para debaixo das cobertas e durmo mais um pouco. Acordo descansado, pronto para enfrentar mais um dia de mesmice. Não tenho nenhuma lembrança significativa de sonhos ou pesadelos.

A exceção ocorreu na noite passada. Quer dizer, pela primeira vez em meses acordei sobressaltado. É que sonhei que estava no aeroporto, embarcando para uma viagem ao Afeganistão. Não bastasse o inusitado do destino, há um detalhe que precisa ser ressaltado. Por algum motivo, não sei qual, precisei sair do aeroporto e fui resolver algum assunto impreciso em lugar relativamente longe. Distraído, perdi a noção do tempo. Quando percebi, estava na hora do voo. Quis voltar rapidamente. Não consegui. Não havia táxi (ou qualquer tipo de condução) disponível. Sem alternativa, comecei a caminhar. Nesse momento, a sensação era de que o aeroporto estava localizado em algum ponto do infinito. A distância parecia aumentar a cada instante. A união do vento com a poeira tornou o ar irrespirável. Fiquei cansado. Foi nesse momento de aflição que acordei.    

Le Teléscope, 1963  (René Ghislain Magritte, 1898-1967)

Psicólogos e psicanalistas de botequim provavelmente farão interessantes análises do conteúdo simbólico desse sonho. Eu também fiz isso, num esforço medíocre de autoanálise. De qualquer forma, brincar com o onirismo tem lá o seu lance de dados (que jamais abolirá o acaso). Não tenho intenção de me perder nesse labirinto interpretativo – que talvez só possa resultar em algo prático se for para fazer alguma aposta no jogo do bicho, ação que, obviamente, não está na minha lista de afazeres prioritários.

O que estou dizendo/escrevendo é que vou continuar dispensando a ajuda teórica e prática do Sigmundinho – que acreditava que o sonho é uma espécie de projeção à realização do desejo. Também estou deixando de lado os outros rapazes que resolveram meter a colher torta no inconsciente alheio. Inclusive o Jung (forever young ou forever yang?), que, certa vez, afirmou que dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco por meio dos sonhos.

Independente de estar certo ou errado, acredito que um sonho é um sonho um sonho um sonho. Mais do que isso é querer comer um pedaço da lua – por mais estranho que pareça, o mundo está repleto de pessoas que confundem o satélite com uma peça de queijo.        

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