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segunda-feira, 11 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (L)



Aos poucos, vou descobrindo como resolver os problemas domésticos. Encontrei em uma das bandejas da geladeira uma gosma amarela que não deveria estar ali. Não sei como surgiu. Talvez tenha sido suco de laranja que derramou. É uma hipótese. Como não estou preocupado em determinar a causa mortis, dispensei a autópsia.

Uma coisa deságua na outra e resolvi limpar o eletrodoméstico. Talvez seja um exagero dizer que limpei. O que fiz foi lavar a bandeja, passar pano molhado em algumas áreas que pareciam complicadas e jogar fora vários produtos. Essa ultima tarefa não se mostrou tão fácil quanto parecia em um primeiro momento. Por exemplo, será que a geleia com prazo vencido ainda pode ser consumida? Adoro geleia de damasco. Aliás, tudo que é feito com damasco é bom. Essa dúvida se somou com outra: será que parte da minha família tem raízes árabes? Não vou procurar pela árvore ginecológica, digo, genealógica da família, mas seria interessante que isso fosse verdade, no mínimo explicaria minha simpatia pela causa palestina.



Sim, estou ciente de que divaguei, fugi do assunto, tomei caminho outro que não o da retidão. Mil perdões. Volto à limpeza e seus mistérios. Esvaziei na pia da cozinha três garrafas de Eisenbahn que estavam abandonadas no fundo da geladeira. Faz mais de 60 dias que resolvi dar uma folga para o fígado. Estou enfrentando o Covid-19 sem uma misera gota de álcool. Quer dizer, tenho usado álcool gel nas mãos, mas isso não conta. Nem desconta. O que canta no meu passado é aquela canção que tocava no rádio: Qualquer dia, amigo, eu volto / A te encontrar. Descartado esse momento nostálgico, verdadeiro amálgama entre música e bebidas alcoólicas fermentadas, cabe esclarecer que, por enquanto, estou de boas – como diz o ilustre herdeiro de minhas dívidas e dúvidas.  

Terminado o asseio no interior do monstro congelante, com o bloco de anotações na mão, comecei a relacionar o que está em falta: queijo, mortadela, leite, iogurte, sorvete, Coca-Cola, suco de laranja. A isso acrescentei frutas, pão, alguns produtos de limpeza. Sem que percebesse, a lista começou a tomar formato de “rancho do mês”. 



É muita coisa, disse para mim mesmo. Será que preciso disso tudo? Será que não estou exagerando? No meio dessa crise comercial (ou existencial), o inconsciente não me perdoou. Aproveitando um momento de distração, o fdp sussurrou: será que você não está precisando casar outra vez?

Vade retro, satanás!, exclamei em voz alta. Da desgraça, quero distância. Melhor deixar esse tipo de experiência para os românticos ou para os carentes afetivos. Prefiro caminhar sozinho. A única formula de casamento que me parece ter algum valor é aquela em que as pessoas vivem separadas por uns trezentos quilômetros e só se encontram nos finais de semana para fazer o que se deve fazer quando estão juntas. Depois, adeus! Segunda-feira é sinônimo de liberdade.

Estou errado? Sei lá! Fechei a geladeira. Anotei mais uns dois ou três produtos para trazer do supermercado e fui tomar sol na sacada.  

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