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quarta-feira, 6 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XLV)



A Covid-19 se manifesta de forma misteriosa. Ontem, por exemplo, recebi alguns sinais. Não sou supersticioso, mas, por precaução, ficarei mais atento. No creo em brujas, pero que las hay, las hay. 

Não consegui escrever as 500 palavras diárias que propus a mim mesmo, quando iniciei este Diário. Faltou concentração, sobrou dispersão. Além de não encontrar as palavras necessárias para transformar o pensamento em texto, o computador – no meio da tarde – entrou em greve. Estava assistindo uma conversa entre o Milton Hatoum e o Luiz Schwarcz, na página da Companhia das Letras (YouTube), quando o mundo virtual desapareceu. Depois de várias tentativas de reiniciar a máquina, surgiu na tela o aviso inequívoco: erro fatal.

Vírus, fadiga de material, conspiração cósmica – não sei o que houve. E mesmo que soubesse, isso de nada adiantaria. Analfabeto em informática, pretendo continuar assim até o fim dos tempos. O que posso fazer é comprar um novo ou mandar formatar (outra vez) o velho. Triste constatação: até as máquinas ficam doentes. Tempos sombrios.

Como não me era possível resolver o impasse, fui fazer chá – que é uma forma de diminuir a ansiedade e de se aproximar da serenidade. Perdão, pela rima circunstancial. Muitas coisas na vida surgem assim, espontaneamente. Fazer o quê? Segue o jogo!

Vi o restante do encontro literário no celular. Uma hora depois, talvez mais, a máquina ressuscitou. Foi possível voltar a usá-la, mas as condições eram outras, a inspiração (ou equivalente) tinha desaparecido.

Hoje é outro dia. Fui ao banco, pela manhã. As últimas contas do mês estão vencendo. Fila enorme em agência minúscula de um banco insignificante. Dos três caixas eletrônicos, um estava desativado. O outro só podia cuspir notas de R$ 20,00. Precisei entrar em uma segunda fila. Perdi uns vinte minutos nessa complicação.



Na lotérica, outra fila. Na minha frente, uma senhora estava pagando 3.859 boletos. Talvez mais. Controlei a aflição. A paciência é um dom divino, dizia minha augusta avó – que nunca na vida precisou esperar na fila. Descontado esse desacerto, tudo terminou bem.

Para comprar o almoço, fila. Pequena. Duas pessoas. Levei para casa rodelas de tomate, ovo, arroz, bife. Um pequeno banquete – que devorei rapidamente.

A vantagem da pandemia está nesse retorno a um modo de vida mais simples, que valoriza os pequenos prazeres, e se afasta dos supérfluos e dos produtos que exigem maior sofisticação.

O parágrafo acima é um primor de ingenuidade. Tão logo o escrevi, percebi que havia caído em mais um conto do vigário. No primeiro momento em que a normalidade (seja lá o que isso for) for recomposta, os abutres voltarão a sobrevoar a carniça. Predadores ávidos, não pouparão os trouxas, os narcisistas, os fashionistas. Em síntese, eles vivem do nosso (meu e teu) dinheiro.



Se houver dúvida sobre o que isso significa, faça a seguinte experiência: abra a caixa de e-mails. Provavelmente está abarrotada de promoções. Em pleno confinamento social, momento em que os valores socioeconômicos estão sendo discutidos, o desespero comercial atinge níveis incomensuráveis. Empresas que ninguém conhecia antes estão oferecendo aparelhos de ginástica, cobertores, equipamento náutico, roupas, sapatos. As operadoras de telefonia querem trocar o celular. Se isso não interessar, oferecem planos imperdíveis, mil vantagens, filmes, milhas, outros aparelhos celulares, etc.

O mesmo procedimento está presente nas redes sociais. O marketing detesta barreiras e – sem qualquer constrangimento – acena com roupas de banho, com relógios folheados a ouro, com eletrodomésticos de última geração, viagens, assinatura de revistas.   

A indústria econômica vive do consumo. O Covid-19 também consome  embora seja outro o produto. Resta saber se é possível encontrar algum tipo de salvação nessa selva.               

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