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segunda-feira, 18 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LVII)




Domingo de sol. Depois do almoço, coloquei uma cadeira na sacada. Fiquei lendo. Como trilha sonora João Bosco no festival Jazz San Javier, 2018 – acessei pelo YouTube. Usei fones de ouvido. Para evitar aborrecer os vizinhos, provavelmente adeptos de outros estilos musicais.  

Tive por companhia Teresa Viegas, uma portuguesa que ninguém sabe quem é. Mais um caso de escritor(a) que se esconde atrás de pseudônimo. O pouco que é de domínio público equivale a quase nada. Nasceu em 1945 e se formou em direito em 1968. Publicou sete livros. Com os contos de Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín, de 2008, ganhou o Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco.

Alguém (quem?) fez alguma referência. Não lembro onde li isso, nem em que termos, mas faz algum tempo. Anotei o nome da escritora e fui procurar na Estante Virtual (que é uma espécie de baú do tesouro para quem gosta de livros). Descobri que dois dos seus livros foram publicados no Brasil. Comprei “As Enganadas” e “Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín”. Foi barato. Não somaram R$ 33,00 os dois volumes, frete incluído. Parece que não há grande procura pela ilustre contista lusitana.

Neste momento, está à venda um terceiro título, livro importado, R$ 238.19. Creio que é justo pagar esse valor. Com o € cotado em aproximadamente R$ 6.25, basta multiplicar ou dividir, a escolha é do freguês, e temos, salvo engano, míseros € 38. Recusei a compra. Discordei daqueles R$ 0.19, que me pareceram um abuso.

Outro dia, os olhos passeando pelos escritores portugueses que habitam uma das estantes, vi os dois livros. Estavam adormecidos a mais de seis meses. Algo me disse que era hora de lê-los. Que assim seja, respondi ao chamado. Li primeiro o livro galardoado. E com dicionário por perto, pois, como é de conhecimento geral, embora o idioma seja comum, o vocabulário é estranhamente diferente. Palavras que não são de uso corrente deste lado do oceano (berma, cirieiro, telemóvel, alfarroba, etc.) atravessam o texto com bastante assiduidade.   

Impressionou-me a facilidade com que o texto se estabelece o pacto entre o narrador e o leitor. Aquele que conta o que quer contar, manejando o fluxo de informações, raramente consegue se aproximar do leitor. A história é somente dele, o leitor é mero espectador. Com o texto de Teresa Veiga não é assim, parece que ela, a escritora/narradora, está conversando com o leitor. O distanciamento, se existe, é mínimo. Apoiada na escassez de diálogos, vai envolvendo o leitor com a mesma tenacidade com que a aranha tece a teia que capturará a mosca.

Os contos de As Enganadas foram devorados – se é que posso usar essa expressão.  Encantei-me, em especial com A Morte do Jardineiro, uma narrativa que coloca em xeque o machismo, subvertendo as aparências, mostrando que é possível construir as relações afetivas através do jogo intelectual. Os argumentos que o marido usa para interpretar o fim do casamento são absurdamente adolescentes e se contrapõem ao racionalismo da esposa que – inesperadamente – emerge de uma vida de submissão. 


Resumindo, não posso dizer que gostei dos dois livros, como um todo. Creio que gostei de alguns contos. As Parcas que está em Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín também é de alta qualidade, a vida interior sendo esmiuçada com perícia e um pouco de crueldade.  

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