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sábado, 16 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LV)


Ferdinand Heilbuth: "O Leitor", 1856.


Será que o número de leitores no Brasil aumentou em 2020? Essa pergunta se torna relevante na atual situação (Covid-19, quarentena). Hipoteticamente, deve ter aumentado. Quer dizer, uma parte da população está enclausurada e deve ocupar essa restrição de movimentos com alguma atividade intelectual. Uma parte está hipnotizada por séries e filmes. Há os que estão descobrindo a trilha sonora de suas vidas. E, em um nível menos dinâmico, talvez haja lugar para novos leitores.

Entre 2011 e 2015 estimou-se que a quantidade média de leitura no Brasil era de 4,96 livros por habitante (incluindo nessa conta os didáticos, técnicos, religiosos, autoajuda e outros). O agravante é que apenas 2,43 livros foram lidos do começo até o fim. Pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, em 2014, revelou que 44% dos brasileiros não costumam ler e 30% nunca compraram um livro. Outro fator complicador é que o leitor, quando alcança os 18 anos, diminui o ritmo de leitura ou o abandona. Paradoxalmente, o mercado de trabalho e o ensino noturno são inimigos da leitura.

Outras pesquisas mostram o desastre em três perspectivas.

1) no Brasil, há uma biblioteca pública para cada 30 mil habitantes. Isso significa, entre outras coisas, que há municípios que não possuem bibliotecas públicas e que as existentes são incapazes de atender a demanda reprimida. Mas não é só isso, a ausência de profissionais na área de incentivo à leitura contribui para que as bibliotecas públicas se transformem em meros depósitos de papel encadernado. Nessas condições, o leitor fica excluído do processo de leitura – não há atrativos para que participe do processo de democratização da leitura, que é a condição mínima para que a biblioteca desempenhe as suas funções vitais. Não bastasse esse horror, para obter algum recurso para reposição do acervo ou para comprar livros novos, muitas vezes as bibliotecas precisam recorrer à mendicância. Nunca é o necessário, nunca se aproxima de qualquer valor razoável. Para muitas prefeituras as bibliotecas são vistas como despesa (nunca são investimentos). Esse argumento costuma ser usado para negar o financiamento que poderia transformar as bibliotecas em centros culturais (organizações que, prioritariamente, formam público interessado em arte e leitura).

2) as tiragens iniciais de um livro físico no Brasil raramente são superiores a três mil exemplares. Ou seja, estima-se que, em um país com cerca de 209 milhões de habitantes, apenas três mil leitores comprarão aquele livro. Na análise do editor (aventureiro?, maluco?), esse número mágico paga os custos e possibilita publicar outros livros. Se houver demanda, reimprime a tiragem (mas isso acontece poucas vezes).

3) o monopólio das grandes livrarias (Cultura, Saraiva, Amazon, Submarino) contribuiu para fechar as livrarias de rua, destruir as empresas de distribuição e transformar o livro em um produto elitizado (escondido dentro de shoppings). A falência das Livrarias Cultura e Saraiva comprova que esse modelo de negócios fracassou. 

Alguém pode dizer que há algo de errado nesses dados. Pode ser. Mas o erro não está nos números e sim nas políticas públicas de cultura – que estão estagnadas. E que ajudaram a transformar o livro em produto descartável (com valor de mercado aproximado do de uma lata de extrato de tomate, exposta na gondola do supermercado).

Voltando ao tópico inicial, tomara que a quarentena tenha servido para ampliar o número de leitores! Aguardemos as novas pesquisas.

Ferdinand Heilbuth: "Lendo no bosque", 1856.

(P.S.: em outra oportunidade, darei a minha opinião sobre os clubes de leitura, o livro eletrônico e as bugigangas que o acompanham).

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