Páginas

sábado, 30 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXIX)




Nos últimos dias, uma película fina de gelo cobriu os campos e a cidade. Paisagem europeia em forma de geada. Temperaturas próximas do zero. Os meteorologistas (eternamente erráticos) anunciam que o ciclo climático é irreversível e que winter is coming.

Dentro do apartamento, enrolado em cobertor, tudo parece bom. A beleza e as cores do inverno propõem uma estética glamorosa. Diante do imaginário social, constantemente reiterado em filmes e séries televisivas, as baixas temperaturas incentivam as ideias românticas: lareiras acesas, taças de espumantes, fondue, corpos amorosos.

O mesmo não se pode dizer de quem precisa sair de casa para trabalhar ou sobre aqueles – em desacerto com o mundo (des)organizado – que não possuem casa nem trabalho. O inverno também possui essa característica: colocar em evidencia que existem outras questões além do idealismo.

Como não existe a primavera sem o inverno, a humanidade precisa enfrentar e superar as adversidades climáticas, econômicas e emocionais. Solidariedade é uma palavra importante nesse momento. Mas, não sei exatamente como isso pode acontecer, o ser humano não cabe na caixinha das coerências.

De minha parte, gosto do frio. Moro em uma cidade situada no alto de um planalto (um pouco mais de 900 metros de altitude). Aqui o verão é uma ficção, umas duas ou três horas na metade de janeiro, se tudo correr bem. O pessoal mais tradicional costuma reclamar que isso é demais, um solzinho de vez em quando é suficiente para recarregar as energias com vitamina D.



Neve, geada, orvalho e garoa encontram o complemento em casacos, gorros, luvas, cobertas de pena. A elegância (que é uma das características almejadas pela moda) se manifesta de outra forma. Na economia das trocas simbólicas, a sensualidade e o mistério substituem a anorexia, as roupas minúsculas e o ar blasé das passarelas. O ballet que acompanha o despir das camadas de roupas sobrepostas enuncia as surpresas escondidas nos corpos. Simultaneamente, anunciam (talvez para depois da quarentena) o calor e o prazer.

Neste ano provavelmente não haverá festas de são João. Ou melhor, serão eventos particulares, dentro de casa. Difícil dizer se terá o mesmo charme. Mas, não faltará chocolate quente, pé-de-moleque, paçoquinha, maria-mole. Os mais velhos assarão um bom pedaço de carne, que será servido com vinho. Sopa também é uma possibilidade.  

Para o pessoal do interior, nada é melhor do que prosear diante do fogo de chão ou do fogão a lenha. Entre um causo e outro, pinhão na chapa, paçoca de pinhão, canecas de café, cuias de chimarrão.  

O segredo do inverno está no poder da imaginação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário