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segunda-feira, 4 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XLIII)



A notícia de que Aldir Blanc estava internado em hospital me fez retirar da estante alguns de seus livros. Aproveitei e reli o Porta de Tinturaria e Um Cara Bacana na 19ª. Foi bom reencontrar aqueles personagens malucos que vivem – eternamente – na Rua dos Artistas: Lindauro e Deyse, Waldyr Iapetec e o terrível Walcyrzinho, Ceceu Rico, o militar reformado que, a todo instante, ameaça colocar a tropa na rua. Enfim, a fauna e a flora em delírios de cama, mesa e banho, sem esquecer o principal objetivo da vida, a diversão (nos áureos tempos talvez fosse o Vasco).

Tragédias e comédias suburbanas na ponta do lápis (da caneta, do computador). As crônicas, os contos, as letras de músicas retratando a realidade burguesa e os sonhos de uma noite de verão (incluindo nesse pacote as namoradas da juventude e inúmeros casos de adultério), a obsessão compulsiva por remédios, os pequenos detalhes diários que transformam nossas vidas em um baile de máscaras (colombinas, pierrôs, arlequins, música e o medo de terminar a noite sozinho). Em resumo, era um mestre na arte de mostrar aquilo que o humor tem de mais corrosivo: expor ao ridículo cada uma das situações cotidianas. E, nesse tom, nunca perdeu a chance de soltar um palavrão, ciente de que a linguagem não pode ter escrúpulos. Ao mesmo tempo, Aldir, como compete a um eterno apaixonado pela vida, nunca negou o lirismo. Ao contrário, em suas narrativas, os corações combalidos, as almas em conflito, sempre encontraram guarida. 

João Bosco e Aldir Blanc, 

Em fevereiro de 1997, cometi o desatino de resenhar Um Cara Bacana na 19ª para A Notícia (Joinville, SC). Recupero um trecho, como prova de admiração pelo cara: Sucesso de público e vendas. Entre os amigos, of course. O triste dessa história é que eles são muitos, milhares. E o livro é bacana, bacanérrimo, um verdadeiro bacanal de humor. Piadas ótimas, daquelas que, sabe como é que é, né?, você lê, ri amarelo (ou Colgate), vira a página, começa outro texto e, de repente, volta rápido à página anterior, só para explodir em gargalhadas sonoras, escândalos na vizinhança, o que será que houve?, a loucura tomando conta. Esse cara é bacana!”




Nas músicas, são muitos os versos que invejamos, vá lá, que eu invejo:

Eu hoje me embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra lá, dois pra cá.

Chora / a nossa pátria-mãe gentil, / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil. /  Mas sei / que uma dor assim pungente  / não há de ser inutilmente (...)

Você fica deitada / com medo do escuro, / ouvindo o coração descompassado. / É o tempo, Maria, / te comendo feito traça / num vestido de noivado.

Quem me vê sentado / atrás dessa mesa / de escriturário / não vê o tarado, / o louco sanguinário, / o bárbaro sem véu, / o estripador cruel...

Aos meus amigos que ficaram / um portador há de levar / um par de asas / e um paraquedas / pra quem quiser me visitar.

A tua mão no pescoço, / as tuas costas macias, / por quanto tempo rondaram / as minhas noites vazias...




Ao saber que a vida de Aldir terminou, lembrei de um poema em que o seu humor se esparrama:

SAIDEIRA
(Aldir Blanc)

Bebi demais. É fato consumado.
Bom, foda-se.
Agora é pensar no futuro.
Eu gostaria de ser cremado
– depois de morto, seu guarda!

Ao ser retirado
já morno do forno,
o público em torno
veria espantado
meu exibicionismo inveterado.
Do pó se ergueria
um termômetro azado
dizendo: está pronto. No ponto.
Um nada acinzentado
ao molho pardo
da cerveja, do uísque, do traçado
e do passado passado passado...

A pior nostalgia
é a do peru Sadia:
já vem (ou já vai) temperado.    

Um comentário:

  1. – Aos meus amigos que ficaram / um portador há de levar / um par de asas / e um paraquedas / pra quem quiser me visitar.

    Ah, amigo véio, ah.

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