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sexta-feira, 6 de maio de 2011

AINDA SOBRE CLÊNIO SOUZA

No início dos anos oitenta do século passado, éramos jovens e bebíamos como se não houvesse amanhã.

Clênio era professor de desenho na Escola de Artes Eluza Bianchini. Sua namorada da época era tão temperamental quanto ele. Brigavam freqüentemente. Conflitos homéricos. Daqueles cheios de gritos, copos espatifados na parede e vizinhos se controlando para não chamar a polícia. No último round dessa série de batalhas não houve agressões físicas. Apenas cicatrizes emocionais. Dolorosas. Dessas que precisam ser carregadas pelo resto da vida. Discutiram sobre alguma bobagem e, para surpresa de todos, inclusive deles mesmos, resolveram se separar. Para sempre.

Nessa época eu estava estudando no período noturno. Colégio Diocesano, último ano do segundo grau. Vivia mais na rua do que em sala de aula. Bebia mais cerveja do que estudava.

Em uma dessas escapadas, provavelmente alguma aula chata, encontrei Jonas Malinverni. Ele estava assustado. Queria ajuda para encontrar Clênio. E me disse:

− Ele saiu lá da escola muito angustiado, disse que a vida não tinha mais sentido. Acho que ele está pensando em suicídio!

Não tive outra opção senão rir.  Não lembro direito. Mas a chance de ter deixado escapar uma risada é grande. Puro nervosismo. Na época não imaginava que alguém pudesse cometer esse tipo de desatino aos vinte e poucos anos.

Entre voltar para a aula e procura pelo desaparecido, o que escolher? Entramos no boteco mais próximo e pedimos uma cerveja. Depois de ter pensado nessa intrigante encruzilhada uns dez segundos, talvez menos, resolvi acompanhar Jonas. Estivemos em todas as espeluncas que conhecíamos. E nada. O cara tinha desaparecido.

A última tentativa de localizar o fugitivo foi em um bar suspeito, mentira, confirmado antro de encontros furtivos e comércio sexual chamado "Cisne branco". E isso nos mostrou como a vida é irônica: ficava muito perto do Colégio Diocesano, onde eu estudava!

O ambiente (escuro, fumacento) era constituído por um corredor. As mesas encostadas na parede (nos dois lados) eram separadas por biombos, que garantiam a privacidade. As garçonetes eram gentis e generosas – sempre dispostas a acompanhar algum solitário no meio da noite. Naquele estabelecimento só trabalhavam mulheres, vigiadas pelo dono, que ficava lá no fundo, controlando tudo.

Para ser atendido, o cliente precisava acionar uma espécie de interruptor na parede, uma luz se acendia acima da mesa, chamando a garçonete.

Foi nesse inferninho que encontramos Clênio Souza. Desmaiado. O rosto enfiado em um prato. Um prato cheio de macarrão à bolonhesa. Tentamos salvá−lo do ridículo, erguendo a sua cabeça. Tudo o que conseguimos foi sujar as mãos de molho. Nojento. Mas, fazer o quê? Amigos são assim mesmo, encrencas que precisamos aceitar como se fossem brinquedos.

Depois de muito esforço, conseguimos arrastá−lo até o banheiro, onde providenciamos uma faxina básica no descornado, digo, no desacordado artista plástico. Também limpamos os seus bolsos, para ver se ele tinha dinheiro suficiente para pagar a conta. Felizmente, tinha. Arrastamos o bêbado de volta para a mesa, pedimos outra cerveja, por conta da vítima, e começamos a discutir sobre o que fazer.

Ao saber que ele estava morando com a irmã, lá na Vila Comboni, que é quase no fim do mundo, sugeri o óbvio: taxi. Lendário pão−duro, Jonas discordou. Disse que não tinha dinheiro. Quem não tinha dinheiro era eu, desempregado naquela época. Eu disse isso para ele, da forma mais inteligível possível. Não o convenci. Então, qual era a alternativa? Carregar o nosso amigo como se fosse um saco de batatas? Pois foi essa a proposta. E foi o que fizemos. Protestei muito − foi apenas para constar, porque não adiantou nada.

Abraçado em nós, um de cada lado, a vítima foi arrastada pelas ruas frias desta cidade gelada. Minha proposta era fazer umas cinqüenta paradas. De preferência em cinqüenta botecos. Mais uma vez, fui voto vencido. Inclusive porque Clênio estava retomando a consciência. E, com aquela voz enrolada de bêbado, disse que queria voltar para casa o mais rápido possível, não estava se sentindo bem. No meio desse discurso, vomitou. Várias vezes.

Escolhemos o caminho mais rápido, não o mais fácil. Subir pela escadaria do Morro do Posto não foi muito inteligente. Primeiro, era íngreme. Segundo, a chance de ser assaltado era de cem por cento. Terceiro, havia a ameaça latente de encontrar a polícia no caminho – e talvez fosse mais seguro ser assaltado. Dizem que Deus protege os bêbados e as criancinhas. Dizem. Não sei em que categoria estávamos enquadrados. De qualquer maneira, foi com grande surpresa que conseguimos chegar ao destino de entrega sem o mínimo problema.

Próximos da casa de madeira, onde morava a irmã de Clênio, encontramos dois pequenos obstáculos: vários cachorros e uma valeta, que só podia ser transposta através de uma pequena ponte, dessas que são feitas com tábuas soltas, basta pisar em ponto que rompa o equilíbrio e a queda na água suja é garantida.

A solução foi gritar por ajuda, ou seja, acordar todo mundo, os parentes de Clênio e os vizinhos. Surpreendentemente, nenhum morador próximo abriu a janela, revolver na mão, querendo tomar satisfação daquela algazarra. Exceto a lâmpada que se acendeu dentro da casa, nenhum movimento foi percebido naquele momento. Instantes depois, alguém abriu a porta e perguntou o que queríamos. Apontando para o traste, contamos a nossa história. Provavelmente cansada de ver a repetição da pantomima sem graça que o irmão protagonizava, a irmã de Clênio nos permitiu a aproximação. Felizmente, os efeitos do porre estavam passando e o infeliz conseguiu atravessar sozinho a ponte de tábuas – amparado provavelmente cairia naquele esgoto.

Na porta da casa, pedimos desculpas à mulher por tê−la acordado, deixamos Clênio entrar e fomos embora – rapidamente. Só respiramos aliviados quando deixamos longe os cachorros, que pareciam ansiosos para tirar um pedaço de nossas pernas.

A volta foi tranqüila, a aragem da noite abençoando a nossa insensatez. No centro da cidade, me separei de Jonas. Continuei caminhando um pouco mais. Na época, eu morava ali perto do Pronto Socorro. Em casa, abri a geladeira e outra cerveja. Depois dormi umas dez horas.

Só voltei a ver Clênio Souza uma semana depois. Ele parecia não se lembrar de nada.

2 comentários:

  1. Amigo Raul,

    Quis postar comentário sobre Tio Clênio, mas errei e não consegui.

    Acho que tô ficando velho e chorão, tipo Rogério Cabeção Pai.

    Essa coisa de nostaliga deve ser uma doença. Uma doença abençoada que só ataca quem tem memória. Outro dia falava com a Jô (minha amada mulher linda) sobre Ki-ponto, Lanchick, Café Ouro, Skalabrin, Bazar Danúbio, Five o'clock, Kantu Jovem(da A Barateira), Cisne Branco, Bar Marrocos...

    E quando lembro do Tio Clênio, do Cabeção meu pai, do Nereu Góss (Tio Nêra), o Dato, dá uma vontade louca de ir embora pra Passárgada - ou para o passado. Mas gosto de presente (menos na aula - trauma).

    Daí lembramos de termos como "fora de pinga", "Pedro Bó" e aí vai.

    Ser véin tem seus encantos. Haverá mais encantos no futuro. Mais lembranças. Mais motivos pra sentir saudades e chorar.

    Abraço.

    Bada.

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  2. Ótimo falar desse grande artista Lageano.

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