Aquela que foi durante muito tempo a mais antiga livraria de Santa Catarina estava localizada em Lages (Rua Nereu Ramos, 211). Alguns de seus freqüentadores mais assíduos formavam uma espécie de confraria. A “Roda de Chimarrão do João Rath” costumava reunir, democraticamente, as diversas correntes políticas e intelectuais da cidade. Para participar do grupo era necessário apenas uma coisa: respeito ao direito de opinião (“quem diz o que quer, ouve o que não quer” era a regra). Todos podiam falar sobre tudo e sobre todos – e alguns exerciam essa prerrogativa. Sentados no sofá, discursavam em favor desta ou daquela idéia. Durante três gerações foi assim.
O tempo faz alguns estragos na vida das pessoas e − porque não? − na dos móveis. Depois de muito protelar, necessário se fazia uma reforma. E como ninguém está livre de algum acidente de percurso, mais importante do que a ausência, foi a sua volta. Com um estofado novo e uma aparência jovial, o sofá parecia exigir alguma comemoração.
Foi assim que surgiu a idéia. José Ari Celso Martendal, Edézio H. W. Caon, Guiomar Gargione, Sérgio Ramos, Valmir Nunes (autodenominado “Caboclinho”) e outras figuras de igual quilate, resolveram promover a pândega. De início, foi publicado, em afamada coluna social local, que o evento se realizaria no dia 14 de agosto de 1999, sábado, nas dependências de “A Sua Livraria”, a partir das 11h00min, de acordo com a famosa pontualidade lageana.
Muitos que leram tal nota não entenderam o espírito da proposta. Inauguração solene da reforma de um sofá? E isso lá é motivo para fazer festa? Como um rastilho de pólvora, a notícia se espalhou pelos quatro cantos da paróquia. Houve quem, incrédulo, desmarcasse compromissos inadiáveis para comprovar que disparate era aquele.
O sábado amanheceu ensolarado e frio. Por volta das 10:30hs, sobre a regência de Luiz Alfredo Ribeiro, foguetes anunciaram, a quem interessar pudesse, que o início do show estava próximo. Alguns comerciantes desinformados suspeitaram que João Rath houvesse ganhado na loteria – por isso, curiosos, montaram observatórios na porta de suas lojas. O que será que está acontecendo lá?, perguntavam entre si. A confusão ficou maior quando dezenas de pessoas começaram a chegar. E muitas delas, para aumentar a balbúrdia, carregavam pratos de doces e salgadinhos, garrafas de vinho, uísque e refrigerante.
As 11:10hs, Ari Martendal, elegantíssimo em seu terno de domingo, solicitou a atenção geral dos cerca de 60 convidados e iniciou a solenidade. Em seguida, pediu ao vogal (foto ao lado) que fizesse a leitura do convite. Cumprida essa pequena formalidade, solicitou-se que a Sra. Lúcia Wagner Sell discursasse. Com uma eloqüência que faria inveja aos mais famosos tribunos atenienses, Lúcia discorreu sobre a infatigável luta de D. Maria Josefina Rath de Oliveira, que muitos obstáculos precisou vencer para efetuar aquela grande obra: a reforma do sofá. Porém, o ponto alto da peroração foi quando lembrou da tarefa inglória das mulheres: “Se não podemos reformar os homens, que pelo menos reformemos os sofás”.
No momento em que Lúcia se preparava para arrematar tão inflamada peça oratória, um assessor informou a chegada de um fax urgentíssimo: “Agradecemos o convite para a inauguração da reforma do sofá. Infelizmente não nos será possível comparecer. Fernando Henrique e Ruth”. O público ficou inconformado. Lúcia terminou o discurso.
Ao retomar a gerência do folguedo, Martendal fez um pequeno histórico da “Roda de Chimarrão” e da importância do sofá na vida cultural de Lages. Disse que a festa foi apenas um pretexto para reunir pessoas e celebrar a amizade, lembrou dos mortos (Rogério Castro, Galileu Amorin, Sineval Couto, Edézio Nery Caon, Pedro Fava, entre outros), condecorou os donos da casa com medalhas alusivas ao evento (ao som do hino nacional!) e passou a palavra para Edézio H. W. Caon, que continuou o clima de nostalgia.
Emocionado, Edézio falou sobre o passado, principalmente sobre aqueles dias terríveis, nos anos 60, quando homens como João Rath e seu pai, Edézio Nery Caon, foram presos por defender “certas idéias e não as idéias certas” (como lhes explicou didaticamente um militar, na época).
Chegou então o momento de cortar a fita inaugural do sofá. Nova série de foguetes assustou as almas mais sensíveis (nessas alturas do campeonato, o mestre fogueteiro já estava abastecido com generosas doses de Passport). João e Maria declararam que o móvel estava reinaugurado e a parte oficial da solenidade, encerrada.
Na hora seguinte, foram esvaziadas incontáveis garrafas de vinho e coca-cola. Bandejas de salgadinhos e acepipes variados acalmaram os que com fome estavam. Muitas histórias foram lembradas. O riso correu solto. Foi como se, ao comemorar a reinauguração do sofá, os organizadores da bagunça estivessem dizendo: pouco importa os desacertos da vida, a única verdade possível está na alegria.
Da esquerda para a direita: Valmir Nunes, José Ari Celso Martendal, Raul Arruda Filho, João Francisco Regis Rath de Oliveira, Sergio Ramos e Edézio H. W. Caon. Encostado na parede, o sofá.
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P.S. 1) "A Sua Livraria", depois de mais de 50 anos de atividades, fechou as portas em 2009.
2) Este texto foi publicado originalmente, e com pequenas mudanças, no jornal "O Momento", edição de 19 a 25 de agosto de 1999.
muinta saudade da sua livraria DA D.MARIA E DO SR.JOAO
ResponderExcluirQue preciosidade!!
ResponderExcluirSAUDADE. DA D MARIA E SR JOAO .... CASAL ILUMINADO.
ResponderExcluirSOU FÃ. ABRAÇO
ResponderExcluirRAUL, o artigo é digno de nota, meus parabéns. Saudades destes tempos.
ResponderExcluirBons tempos!
ResponderExcluirTempos que se foram.." o tempo urge'.
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