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sexta-feira, 20 de maio de 2011

O PAI DE PÉRSIO ARIDA

O economista Pérsio Arida, que foi presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique, publicou na revista Piauí (n° 55, abril de 2011) um longo e doloroso texto autobiográfico (pedaços editados do seu livro de memórias, que deverá ser publicado no segundo semestre)

Como é de costume, li a revista de forma fragmentária. Não creio que alguém consiga ler a Piauí de uma vez só. E isso significa que li algumas matérias antes de dormir, outras em fila de banco. Deixei o relato de Pérsio por último. E a razão foi a mais cômoda possível: é difícil ler (de uma tacada só) um texto de 27 páginas (na Piauí, que não é exatamente um gibi!).

Com uma linguagem límpida (surpreendente em um economista!) e de excelente qualidade literária, o relato delineia o período de militância política contra os governos militares e o quanto isso afetou Pérsio durante todos esses anos.

No entanto, para mim, não são as indecisões ideológicas ou as descrições de tortura que chamam a atenção no texto. Fernando Gabeira ("O que é isso, companheiro?") e Alfredo Sirkis ("Os carbonários"), entre muitos outros, já haviam destruído antes quaisquer ingenuidades políticas sobre os acontecimentos das décadas de 60, 70 e 80.

Remando contra a maré, há dois parágrafos lá na página 53 da revista. Provavelmente a maioria dos leitores nem os levou em consideração. Basta ver o velho e caótico resmungar sobre quem traiu quem e sobre o quanto é fácil para um banqueiro fazer pose de revolucionário que está estampado na seção de cartas da revista, edição de maio.

Sem medo do desconforto, típico em um acerto de contas com o passado, momento em que surgem no horizonte algumas dívidas não saldadas, salgadas, difíceis de digerir, Pérsio relata um episódio familiar. Na companhia do pai, uma viagem para Estados Unidos.

A tentativa desesperada para encontrar algum tratamento médico contra a leucemia que estava corroendo o pai termina com um toque de nonsense:

− Sabe, Pérsio, o que eu queria? Aproveitar a passagem de volta e conhecer a Disney.

Para o filho, que também é o narrador das inquietações familiares, é a voz do pai que propõe um anestésico para a dor. Mas, com uma diferença fundamental, não é o sofrimento do doente que precisa ser aplacado, é o esforço discursivo que envolve a perda. Nesse sentido, o pedido do pai, aparentemente absurdo naquela situação de aflição, é que determina outra direção para o teatro que une a paternidade e a filiação.

"Pois fomos. E naquele mundo de fantasia, ele se divertindo com os Piratas do Caribe e a Space Mountain, o mundo ficou de ponta−cabeça. Era eu quem falava inglês, quem comprava os bilhetes e organizava a viagem; e era ele quem se maravilhava como uma criança, incrédulo naquele mundo perfeito. Chegou a entrar várias vezes na fila do mesmo brinquedo só para acompanhar um novo amiguinho de 7 anos. Do lado de fora, vi os dois se divertindo a valer na xícara que roda, se esmerando em imprimir máxima velocidade aos rodopios e soltando uma expressão de lástima quando soava o gongo. Em Orlando, era eu quem o carregava de cavalinho no ombro, dando voltas na praça do Magic Castle para fazer com que o ar fluísse naquele sangue cada vez mais enfraquecido. Ele não queria terminar de mal com a vida."

No momento extremo, diante da possibilidade concreta, irremediável, de perder o pai, ou melhor, de perder as referências do mundo ordenado, o olhar do narrador se mostra especular: o menino emerge como pai e o pai mergulha na infância.

No instante em que as imagens se mostram ao contrário, o mundo "de ponta−cabeça", o escapismo inconsequente e momentâneo do pai emerge da escuridão como um farol. O filho, herdeiro da imagem paterna, em lugar de se alimentar da agonia causada pela perda que se aproxima, aceita que alguns sentimentos não podem ser esvaziados daquilo que neles é substância ("Do lado de fora, vi os dois se divertindo a valer"). É a leitura do testamento paterno ("Ele não queria terminar mal com a vida") que determina o fim do ressentimento e o início da compreensão. Nem o pai nem o filho terminaram mal.

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No filme "And when did you last see your father?" ("Quando você viu seu pai pela ultima vez?"), dirigido por Anand Tucker, em 2007, e baseado em livro de Blake Morrison, também há esse esforço do filho para se aproximar do pai. No entanto, diante dos imperativos do destino, isso não acontece, exceto no plano narrativo. O tragicomédia que envolve a crueldade familiar habitualmente não resulta em final feliz: o pai morre antes que o perdão mútuo seja concedido. Sobra ao filho, a carga emocional de pedir desculpas através das palavras (e, depois, através da adaptação cinematográfica). A dor nunca é atenuada.

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