Páginas

quinta-feira, 5 de maio de 2011

CLÊNIO SOUZA E O INFÉRNO COLORIDO

CENA 1

"Saímos de Urubici porque a agricultura não dava mais. A lavoura de tomates, sabe como é que é?, já não sustentava a nossa família. Éramos quatorze filhos, sou o décimo terceiro, e meu pai decidiu tentar a sorte em Lages. Estava seduzido pela promessa de trabalhar em uma madeireira. É claro que deu com os burros n’água. Isso foi no início dos anos 60. Nesse período, lá em casa, muitas vezes faltava, inclusive, comida na mesa. Passamos fome. Ah, isso eu sei o que é, passar fome! Minha mãe, quando batia o desespero, mandava os filhos até a charqueada, ali no Coral, buscar cabeças de boi, tripas, ossos, restos jogados fora, coisas que eles não queriam mais. A gente também subia no telhado da nossa casa, onde havia um pombal. Nos dias de sorte, conseguíamos pegar umas duas ou três pombinhas. Tudo isso servia para compor um sopão, onde pedaços de pombas boiavam misturados com miolos de vaca. Envolvidos pelo vapor onírico da comida, degustávamos aquilo como se fosse um banquete."

CENA 2

O universo pictórico de Clênio Souza se aproxima perigosamente de Jorge Luis Borges: espelhos, punhais, centauros, anjos carcomidos pelo medo, harpias, flores, mulheres deformadas pelo olhar e pelo abandono masculino, ampulhetas, vacas, o terror das bestas e dos monstros mastigando a dor, síncopes causadas pela avidez do desejo (com o "Livro dos Seres Imaginários" aberto ao acaso, é possível procurar a saída do labirinto e da ignorância).

Há um descompasso entre a tela e o olho do espectador, entre o prazer e o ódio, entre a beleza que imaginamos perfeita para enfeitar a sala de visitas e a leitura nauseante que Clênio fez do mundo. É traumatizante. É o inferno colorido. E não adianta querer erguer parede entre o que está diante de nós e o desespero: a agonia retratada se incorpora em nossas vidas, em nossas peles, como uma tatuagem, uma marca feita a ferro e fogo.

A pintura de Clênio Souza é uma tempestade a causar danos irreparáveis no coração e na mente dos menos prevenidos – tropel e torvelinho desembocando noite adentro, numa viagem sem destino. O artista sabe, melhor do que ninguém, que temos sangue nas mãos – somos fruto do pesadelo suburbano, mergulhando, cada vez mais, no abismo existencial, sem sequer merecer o privilégio da vertigem.


CENA 3

Palavras de Clênio Souza:

"Atualmente a arte é puro lixo. Tudo é automático, sem cor, sem vida. Nem mesmo a morte é retratada. Só os esqueletos, ossos inúteis. É tudo estático, ‘instalado’ por ‘macacos’ robotizados."

"Foram quase quinze anos tentando viver de arte. Era pintar os meus quadrinhos, esperar a tinta secar, e, com o dito cujo debaixo do braço, procurar um comprador. Freqüentemente voltava com fome e com o quadro. A relação produção−consumo é absolutamente surrealista. Muitas vezes mais surrealista que o surrealismo."

"Tentei a sorte em Florianópolis. Não deu certo. O único artista que me apoiou, na época, foi o Martinho de Haro – que gostava muito da minha pintura. Morei em hotéis de terceira categoria. Algumas vezes dormia no prédio da Alfândega. Fiquei amigo de um dos guardas. Quando faltava dinheiro para o hotel (para a comida, então, nem vale a pena lembrar), ele me deixava ficar, sob os painéis, em uma cama improvisada. Cansei dessa vida e voltei para Lages. Não dá para sustentar essa aura de perdedor por muito tempo: a fome e o desejo vivem a nos lembrar que somos humanos, cheios de medo e dor."

"O nosso grupo, denominado pelo Harry Laus de ‘Os três rebeldes’ (Jonas Malinverni, Adilson Guanabara e eu), comportava ainda outro personagem: João Agnaldo Godói. E embora fossemos quatro nunca tentamos descobrir quem era D’Artagnam. Os deuses nos privilegiaram com formas diferentes de contemplar o mundo."



CENA 4

Clênio Souza começou a pintar aos sete anos. Costumava acompanhar o pai à madeireira. Com pedaços de carvão começou a desenhar nas tábuas. O estilo foi se desenvolvendo, criando identidade. A curiosidade o levou a outro mundo, diferente em tudo daquele onde até então tinha vivido. Não economizou energias para tentar entender que as suas mãos poderiam transformar idéias em imagens. Foi a revelação. Desde então nunca mais parou de desenhar palavras, emoções, anti−poemas visuais (vísceras, excrementos, loucuras, pênis e úteros, desilusões, esgares).

Dos mestres aprendeu que o traço precisa ter "algo mais" e que as figuras, mesmo presas ao "suporte" da tela, respiram, gritam, agridem. Sem movimento só resta o cheiro fétido da decomposição, a ausência, o nada.


Sua vida foi quase sempre constante burburinho, pura agitação. Só sossegou quando casou com Carla. E uma das traduções desse fato foi o diluir das agruras da vida no paraíso do consumo.

Artista plástico, chargista, projetista, ilustrador, professor de desenho e pintura, poeta ("Farpas", seu único livro, foi bastante elogiado), escritor... Rabiscou (mas não concluiu) um longo ensaio sobre Münch ("é o meu grito!").

Francis Bacon (o pintor, não o filósofo) é o seu favorito. Há uma identificação, um ponto de contato e de ruptura, uma irmandade anárquica. Alguma coisa como "desafinar o coro dos contentes", produzindo uma nova estética – cores e formas, desfilando na tela, em interminável discurso contra o belo, o politicamente correto, a esterilidade criativa. A violência como veículo artístico. Disgusting art.

Adorava histórias em quadrinhos e a literatura fantástica. O "non−sense" está sempre presente em sua obra − "é um símbolo, uma representação magnífica da ausência de coerência em Deus". Tinha fixação pelo filme "Alien, o 8° passageiro". Sempre o revia.

Ganhou, em 1982, o grande prêmio "Reinterpretação da primeira missa no Brasil", promovido pelo Museu de Artes de Santa Catarina (MASC) e pela Fundação Catarinense de Cultura. Outras láureas também "pintaram em sua horta", mas ele não gostava de falar desses pequenos orgulhos, guardados na caixa das vaidades, como se fossem jóias, tesouros desenterrados em uma ilha distante.

CENA 5

"De todos os planos traçados esses anos todos apenas um ficou no meio do caminho. Lá pelos anos 80, em plena efervescência cultural, tínhamos um interessante grupo de artistas: Fábio Brüggemann, Fernando Karl, Jonas Malinverni, Adilson Guanabara... Éramos os herdeiros e, ao mesmo tempo, os remanescentes da administração Dirceu Carneiro. Muitos de nós se reuniam na Biblioteca Pública.

Na época, não me lembro direito a data, houve um evento cultural (lançamento coletivo de livros, exposição de artes plásticas). Foi ali, no prédio em frente ao Cine Marajoara. Todos participaram da festa. Artista plástico quando se mistura com escritor boa coisa não sai. Tínhamos planejado uma "performance". Na hora de colocar o "happening" na prática, teve gente que "amarelou" e o projeto foi por água abaixo.

A idéia era simples: iríamos montar um trilho ferroviário por todo o salão. Dentro da vagonete colocaríamos uma vaca morta. Na cerimônia de abertura do evento, eu levaria a vagonete até o centro da sala, pediria a palavra e, depois de anunciar o final dos tempos e da arte, cortaria a vaca em múltiplos pedaços. Tudo seria distribuído aos convivas. Seria incrível ver as madames, com os seus casacos de pele fedendo a naftalina, recusarem a carne sangrenta.

E você sabe o que me assusta nisso tudo? Alguns anos atrás, "outro louco", acho que da Europa central, ganhou o grande prêmio da Bienal de Veneza fazendo coisa similar com um cordeirinho – e sem a vagonete!"


xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

PS: 1) Este texto (com diversas alterações) foi publicado na capa do suplemento Anexo, do jornal A Notícia, em 28 de maio de 1996.
2) Clênio Souza faleceu (falência múltipla dos órgãos) em 2006, aos 48 anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário