No confronto entre literatura e cinema, o caminho mais trilhado é ler o livro e confrontá-lo com a versão apresentada na tela grande. No entanto, em algumas ocasiões, por diversos motivos, não há como evitar o caminho inverso. Ou seja, ver o filme e só depois ler o livro.
Fui ver Os Descendentes, o filme. Fui sem guarda-chuva, quer dizer, sem qualquer juízo de valor antecipado. Nem mesmo procurei conhecer a sinopse. A única referência pré-existente era a indicação chocha do George Clooney para o prêmio de melhor ator no Oscar. Que, aliás, não levou. Um francês desconhecido roubou a cena e a estatueta.
Clooney está longe de ser um ator do primeiro time. Talvez não integre o segundo. Inclusive porque costuma participar de algumas produções de pouca expressão. Por outro lado, costuma explorar as manchetes dos jornais e das revistas de fofocas com um comportamento politicamente “engajado”. Filmes de um nível acima da média, como Boa Noite e Boa Sorte (2005) e Syriana (2005), mostram de que lado bate o seu coração.
O enredo de Os Descendentes (Dir. Alexander Payne, 2011) não apresenta dificuldades. Quer – apenas – contar uma boa história e da forma mais simples possível. Matt King, corretor de imóveis, interpretado por Clooney, é o fiel depositário de uma imensa herança familiar e que remonta aos reis havaianos. São terras que, se não forem vendidas em menos de sete anos, reverterão ao Estado. Seus primos, os outros herdeiros, fazem bastante pressão para que o negócio seja realizado o mais rápido possível.
Não bastasse essa encrenca, a família de Matt é complicada. E, de certa forma, está em pé de guerra. A esposa sofreu um acidente náutico e entrou em coma irreversível. A filha mais velha adora a trilogia sagrada sexo, drogas e rock-and-roll. A filha mais nova não conhece as regras mínimas de comportamento civilizado. E o pai, claro, sempre esteve ocupado demais com os negócios para dar atenção à esposa e às filhas.
Visto de perto, esse conjunto de elementos batidos (inúmeras vezes repetidos em livros e filmes) ilustram um mundo estruturado na reciclagem criativa. No ordenamento geral, prevalece a idéia de que o antigo – quando embrulhado para presente – substitui o novo. A perda da aura (como definiu Walter Benjamin) significa que a cópia instrumentaliza a proposta capitalista de servir mais do mesmo, cobrando mais pelo que é menos.
De qualquer forma, o filme não é ruim. Algumas questões são tratadas com bom humor e o espectador não sai frustrado da sala de exibições. Shailene Woodley, a atriz que interpreta Alexandra (a filha mais velha) serve de escada para as canastrices de Clooney. E é essa personagem que determina parte do andamento narrativo: ao contar para o pai que a mãe tinha um caso extraconjugal, estabelece um vínculo emocional que era inexistente entre eles (pai e filha). Depois dessa amarração, o filme deslancha na direção de alguns milhões de dólares em bilheterias mundo afora.
Como o cinema exige condensação, não é possível evitar o exercício de adivinhação. Fiquei pensando sobre quantas páginas foram utilizadas pelo autor do texto para descrever a história da posse das terras, por exemplo. Ou sobre as explicações que justificam a presença de Sid (o amigo ou namorado) de Alexandra no momento em que Matt e Alexandra precisam contar aos amigos e familiares que os aparelhos do hospital serão desligados, pois não há mais esperanças em manter a mulher viva. Há outros pontos que parecem estar a deriva e somente quando confrontados com o texto podem ser esclarecidos.
Vi um exemplar do romance escrito por Kaui Hart Hemmings na vitrine da livraria. Bastava comprar o livro e, depois da leitura, encenar o velho exercício da decepção. Não considerei essa possibilidade. Prefiro continuar na ilusão de que o filme é mediano, um retrato dramático das famílias modernas, disfuncionais.
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