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segunda-feira, 2 de maio de 2011

DOIS BEIJOS

O beijo é um fragmento do discurso amoroso. Oscila entre o roçar de lábios e a vontade de "[matar] a sede na saliva", como cantava Cazuza. Entre tantas mensagens, sinaliza para o inequívoco contato entre os corpos, a transgressão comportamental e a produção de um tipo especial de prazer – que exige (como diria Barthes) que a pele responda ao chamado do desejo. E ela, a pele, responde através da pulsão amorosa, quer repetir esse encantamento tantas vezes quanto for possível.

Os ingleses são famosos por serem avessos às manifestações públicas de afeto. Eles respeitam um protocolo que provavelmente remonta aos tempos ancestrais. E é esse estatuto que rege as suas (deles) formas de comportamento. Não sei se esse raciocínio serve para justificar os beijinhos (assim mesmo, no diminutivo) trocados por William e Catherine, na sacada do Palácio de Buckinghan, no dia 29 de abril de 2011. Para quem carrega − junto com a vida − as obrigações de Estado, talvez seja (muito) constrangedor beijar em público. Ninguém nasce anglo−saxão impunemente.

Contrapondo a falta de graça do espetáculo matrimonial inglês, há o beijo (roubado, mas não muito) de Iker Casillas e Sara Carbonero, após o jogo final da Copa do Mundo de Futebol (África do Sul, 2010). O sangue latino ferveu e o goleiro, eufórico com a conquista espanhola, como se fosse galã de filme dos anos 50, beijou apaixonadamente a namorada diante das câmaras de televisão. O fervor romântico do cavaleiro medieval (aquele que supera todos os perigos para obter, no mínimo, um olhar da donzela) foi revivido pelo gesto teatral, impulsivo, quase adolescente.

Talvez o que destoe no beijo inglês seja a falta de cumplicidade afetiva. Pelo menos em público. William e Catherine parecem amigos, não convencem como amantes. Talvez o que incomode no beijo deles seja o propósito publicitário, a imagem produzida especialmente para a primeira página dos jornais ou para os out−doors institucionais. Voyeurs da vida sexual alheia esperavam por um pouco mais. Possivelmente a ambigüidade que sugere malícia, o eterno conflito entre a virtude e o interesse carnal. Essa imprecisão o protocolo suprimiu. Quem olha para a imagem oficial, dificilmente imaginará que eles sentiram o abrir das portas do céu, dificilmente acreditará que eles estavam embriagados pela sensação de que o mundo perde o sentido quando o desejo é sincero.

No beijo entre Iker e Sara é possível visualizar tudo, menos gelo. Não há dificuldade em aceitar que o sangue está a correr com pressa pelos dois corpos, que há eletricidade no ar, faíscas que podem causar incêndios incontroláveis. Enquanto os lábios se unem, estrelas nascem, eclipses acontecem, a terra é sacudida por terremotos e tsunamis, sinos soam nas torres das catedrais. É um beijo de paixão, repleto de volúpia, composto pela urgência das promessas que somente podem ser cumpridas na intimidade.

Enquanto o beijo de William e Catherine significa "vamos viver juntos, a partir de agora", o beijo de Iker e Sara pode ser traduzido da seguinte forma׃ "não posso mais viver sem você".

Sim, urge não esquecer que as situações são diferentes, que os interesses em jogo também estão em outra sintonia. Mas, um beijo é um beijo é um beijo. E, apesar do cinismo capitalista ou do desrespeito contemporâneo aos sentimentos afetivos, nada consegue substituí−lo como demonstração de amor (nesses tempos sombrios, um sentimento de difícil conceituação).

2 comentários:

  1. Bárbaro! A primeira vez que leio sobre a teoria do beijo, hehehehe. O primeiro parágrafo diz tudo pra quem não precisa mais se preocupar com nada.

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  2. Soninha: Obrigado! Agora que você mencionou, também fiquei em dúvida. Não estou lembrando de alguém que tenha escrito sobre a "teoria do beijo". Vou pesquisar, até porque isso pode render algum outro texto! Beijos!

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