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segunda-feira, 16 de maio de 2011

NOJO

O peso da vida. Naquele domingo tudo era desagradável. Deixou de lado o livro que estava lendo por obrigação profissional. Insuportável. Levantou da poltrona. Na janela, teve saudade das coisas. Que nunca conseguiu realizar. Uma ausência inexplicável. Um punhal latejando dentro do peito. O sol prenunciava o fim da estação. Ao mesmo tempo, devorava o rosto – uma carícia amarga e quente. O corpo cansado estava a dar voltas em torno de si mesmo. A rua acenava com promessas. Aceitou o desafio. Jeans surrado, camiseta branca. Sandálias. A porta. O corredor frio do prédio. A luz repentina e absurda, ao seu final. As esquinas. Uma sucessão de penumbras e cinzas. Retratando a tristeza imensa na cidade. Alguns adolescentes, de bermudas folgadas e coloridas – no outro lado da calçada. Vozes alegres ecoam na tarde. Por um instante, descompasso.

A calçada engole os passos e as pernas. O caminho é inexistente. O mapa e a bússola ficaram em casa. Na bagagem, medo e certeza. A contradição é molho agridoce. Surpresas para o paladar.

Os prédios caminham na distância. Janelas e carros somem na velocidade. Passageiros e passarinhos. Alguns versos de Tabacaria são lembrados. O deserto é fugaz. Ou melhor, deserto. Veludo e nácar. Como naquela propaganda. Na revista. Três da madrugada. A insônia batendo ponto. Companhia.

Nada de ficar parado. Olhar e não ver. Pode? É indecente encontrar. Outra vez. Dez anos depois. Alguém que um dia amamos. Diferenças. Estragos. O passado é cruel. O espelho. Quebrado. Na face. Um pergaminho e a revelação. Não existe impunidade. Qualquer justificativa. Inútil. Tolice querer saber dos porquês. Esqueça. Agora não é hora de parar de fumar.

Na banca dos jornais, a manchete: só há conforto na coerência. A vida sempre cumpre com suas promessas. Sofrimento. Transitória felicidade. Rápida. O barulho da sola da sandália. Lambendo as pedras da escada. Degraus. Rádio. Alguém cantarolando Lulu Santos. Futebol, ao lado. A torcida inflamada – diante do televisor.

Atravessou a rua. Visagem. Miragem. A mulher perfeita. Diferenças de idade. Provação divina. O engano. O novo sempre vence. Isto é, a lógica não possui lógica. O fim das ilusões. Alguém chama pelo nome da garota. O som: Helena. Vale uma guerra. Eles se encontram. O rapaz, cabelo comprido, brincos, cheio de sorrisos, se aproxima. Envolve o corpo da princesa. Beijos. Na boca. Demoradamente. Azares da sorte. Nada resta senão voltar. Para o outro lado da rua. A terceira margem do Rio de Janeiro, apesar da temporada de caça aos desatinos iniciar em junho. Não deveria ter tido idéias. Quem pensa se decepciona. Retornar, outra vez. Derrota. Ironias da modernidade. No próximo carnaval. Quem sabe? Sair na avenida. Fantasiado de João Gilberto provinciano.

A praça estava cheia. Crianças constroem música. Areia. Vazias mesas. Para jogar xadrez. Toalha de pic−nic. Estendida na grama. Da cesta aberta, escapam punhados de formigas. Leve garoa. Um menino. A boca suja de danoninho. O pipoqueiro espirra. A insuportável leveza da dor.

Vontade de voltar para casa. Frio corroendo os ossos. Fraquezas da carne. Impossível confundir gostar com gozar. Faz muito tempo que a inutilidade. Tomou conta do coração. Para que serve a poesia?

Erguer parede entre a vida e o desespero. Inferno subterrâneo.

Arrependimento não mata. Deveria ter dito à mulher amada. Entre lágrimas e desejo deveria ter dito, como aquele personagem de Things to do in Denver when you’re dead: "Quer saber de uma coisa? Sou igual aos outros. Só que preciso mais de você do que eles." O horror, o horror. Fazer turismo pelo passado. A solidão é cancerígena. Imagens desfocadas.

Abriu a porta do apartamento. Novamente. Só para descobrir que tudo continuava igual. Pesadelo suburbano. Billie Holiday compreende. A holyday. A holly day. A hollow day. Você precisa de férias. Hoje não é o dia ideal para pescar peixes−banana. Ou marlins. A esperança arrebentada pelo nojo. Dose dupla de brandy. A fragmentação cartesiana do ser. Lesmas sobem pela parede. Na direção do nada.

Apagou as luzes. Todas as luzes. No chão. Ficou. Encolhido. Como um feto. Os joelhos próximos do peito. Os pés sujos. A raiva. A ausência de forças. A noite.


(Imagens de Francis Bacon)

2 comentários:

  1. Opa!! Senti firmeza. Texto forte do mesmo jeito do seu autor. Só uma coisa você esqueceu: Os créditos para as imagens fantásticas de Francis Bacon. Um abraço de sua leitora e irmã Mara.

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  2. Mara,

    Como sempre você está com a razão.

    Beijos,

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