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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

DIVAGANDO, BEM DEVAGAR, COM OS ROMANCES POLICIAIS

O romance policial é o patinho feio da literatura contemporânea. Leitores "sérios" (seja lá o que isso for) costumam torcer o nariz empinado quando encontram apreciadores dessas narrativas de entretenimento. Em seguida, fazem alguma comparação absurda entre este e aquele autor, normalmente destacando as qualidades de seus favoritos (Joyce, Proust, Faulkner, Beckett...).

Ou então mencionam que, no romance policial tradicional, nada é mais chato do que encontrar, logo nas primeiras páginas, um ou vários cadáveres. O que se segue é a velha e tradicional briga entre o gato e o rato – o autor e o leitor disputando uma corrida idiota para provar quem é o mais inteligente. O escritor induz raciocínios, espalha pistas falsas, acrescenta detalhes absolutamente dispensáveis. O objetivo é um só: dificultar a solução do enigma – o nome do criminoso só deve aparecer na última página. O leitor, por sua vez, tenta separar o joio do trigo. Seu propósito é encontrar o(s) culpado(s) e o(s) motivo(s), antes do final da narrativa. Como sempre acontece nesses casos, não há vencedores, não há prazer, não há sentido. É uma proposta inútil.

Lá pelos anos 20 e 30 do século passado, alguma coisa mudou. Foi como descobrir que é possível iluminar o outro lado da lua. Os responsáveis por essa mudança de curso foram Dashiel Hammet e Raymond Chandler. Como eles sabiam escrever, foi possível dar uma dimensão mais literária ao texto, acentuando a ação e os diálogos e eliminando, na medida do possível, as descrições. Além disso, pela primeira vez nesse tipo de texto, os protagonistas demonstram sentimentos e emoções. Sam Spade (protagonista dos romances de Hammet) e Philip Marlowe (criado por Chandler e interpretado, no cinema, por Humphrey Bogart) são detetives deselegantes, desleixados, cheirando cigarro e uísque barato, e, de vez em sempre, namorando uma loura suspeita. Muito diferentes, por exemplo, do fleumático, asséptico e assexuado Sherlock Holmes, que – esbanjando aristocracia decadente – se isola do mundo através de um verniz intelectual típico de leitores de almanaque. Holmes (assim com Hercules Poirot, criado por Agatha Christie), não é verossímil.

Outra característica estilistica que se acrescentou foi o uso frequente do coloquialismo e do tom cortante, onde os "achados" são quase que uma regra na estrutura literária. No início de A irmãzinha, Chandler, ao descrever o ambiente onde está situado o escritório de Marlowe, salpica o texto com frases ácidas: "Casas especializadas em virgens de dezesseis anos faziam uma atualização completa em seus cadastros." E o livro segue em frente, nesse mesmo tom, misturando ironia e crueldade, despreocupado com o mal−estar dos leitores mais sensíveis.

Essa proposta fez escola. Muita imitação e pouca qualidade. Nas décadas seguintes, o romance policial se transformou em mercadoria. Mercadoria descartável. Dessas que ocupam lugar nas prateleiras das livrarias. Livros para serem lidos nas férias, sem compromisso. Diversões baratas para corações inquietos.

E atrás da banda, veio a crítica literária – proclamando que o romance policial e um "gênero menor". Foram vaiados. Não há literatura "maior" ou "menor". O que há é boa ou má literatura. Literatura ou lixeratura. Alem disso, os "especialistas" fazem questão de esquecer que romances "maiores" como Santuário (William Faulkner) e O Estrangeiro (Albert Camus) são romances policiais disfarçados. Outra coisa que muita gente esquece é que Jorge Luis Borges também escreveu narrativas policiais. Mas deixe isso pra lá, cada um escolhe o engano que quer levar para casa.

Entre os escritores contemporâneos (e publicados recentemente no Brasil) vale citar dois em especial: John Dunning e Lawrence Block. São a água e o azeite. Mais diferentes impossíveis. Melhores não há. Cada um na sua e nós, os leitores, olhos colados em seus textos, sorvendo do mais puro e delicioso néctar.

John Dunning, através de seu personagem Cliff Liberty Janeway, renova a tradição do detetive durão, que se envolve em situações complicadas, namora moças bonitas (às vezes, muito carinhosas, apesar da péssima fama) e que precisa conviver com um código de ética muito particular. É que muitas vezes não é possível engolir o orgulho e evitar um soco na cara do desafeto. Janeway é diferente dos demais detetives por uma característica muito especial: ele é um alfarrabista. Isso mesmo, um apaixonado por livros. E protagoniza uma combinação rara: sangue e bibliotecas. O cara, que já foi policial, é proprietário de uma livraria e coleciona obras raras. Volta e meia, assim como o mel atrai as moscas, Janeway se envolve em alguma confusão típica de bibliófilo. E dá−lhe alegrar o ambiente com alguns tiros – o suficiente para manter o legista ocupado.

Lawrence Block tem proposta completamente diferente. É um escritor cool. Nunca usa frases de efeito. Quer − apenas − contar uma história. Uma boa história. Possui um estilo de quem gosta de contar "causo" ao redor da fogueira (ou do fogão de lenha), numa dessas noites calmas de inverno. Matthew (Matt) Scudder, o protagonista de muitos de seus romances, é um ex−policial que namora uma prostituta e que, nas horas de folga, frequenta as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Café é a sua bebida favorita. E, assim, de "cara limpa" vai tentando resolver as complicações que surgem pelo caminho. E sempre surge um caso escabroso para investigar.




P.S.: No Brasil, o melhor escritor de romances policiais, Rubem Fonseca, fez mais estragos do que benefícios. Pioneiro, ele também criou uma tropa de puxa−sacos, que o imitam − sem nenhuma vergonha de não terem voz própria.
Aqueles que não seguem a cartilha fonsequiana carecem de consistência. Luiz Alfredo Garcia-Roza (com o detetive Espinosa) e Tony Bellotto (pela trilogia Bellini) são exceções – embora nenhum deles consiga esconder que beberam (e muito) na fonte dos mestres Hammet e Chandler.

6 comentários:

  1. Muito bom texto, Raul!
    Uma verdadeira aula de literatura do estilo policial!!!
    Obrigada!!!
    Abraços
    Vanda Emília

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  2. ... porém eu prefiro o Philip Marlowe do Robert Mitchum

    Texto muito bom !!!

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  3. Eu li o pioneiro brasileiro, Luís Lopes Coelho, de "A morte no envelope". Há uma teoria que diz que como não há instituições jurídicas confiáveis no Brasil, o gênero do romance policial não poderia se desenvolver por aqui. Porque a polícia não investiga, ela achaca e tortura. Fazemos do gênero algo diferente no Brasil? Certamente não com Toni Bellotto, que é um pasticho.

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  4. cervejaerua: Sou um fã de Humphrey Bogart. E isso me fez ficar cego. Desculpe-me. Também gosto muito da interpretação do Robert Mitchum como Philip Marlowe.

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  5. Rafael: Melhor Tony Belloto do que Patrícia Melo. Claro que os romances dele são um grande pastiche, mas ele não esconde, não escamoteia as fontes que o pariram. Outra coisa: vou mudar um pouco o texto do PS, acrescentando o Luiz Alfredo Garcia-Roza como excessão ao esquema fonsequiano.

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