quinta-feira, 29 de setembro de 2011
SAUDADES
Ao olhar para trás, numa espécie de retrospectiva de minha infância e adolescência, descubro que estar vivo (depois de ter passado a barreira do meio século) implica em se alimentar de uma série de lembranças – e que essa, digamos, nostalgia não têm a menor importância no mundo em que vivo.
Lembrar o passado é compreender o significado da orfandade – e, paradoxalmente, do contentamento.
Sinto falta das garrafas que – para desespero de meu pai – troquei por picolé e sorvete.
No armário da cozinha não encontro a caneca "esmaltada", onde costumava beber água e/ou leite.
No guarda−roupa, faltam−me calças de "brim curinga".
Nunca mais vou ver aquela professora do primário, o primeiro anjo a povoar os meus sonhos inquietos.
O mundo estava dividido em dois grupos: de um lado "colorados"; do outro, "Guarani até debaixo d’água".
Capilé, groselha, gasosa, Crush – bebidas que não existem mais.
Não é mais possível brincar de faroeste, momento em que imitava os caubóis da matinê do cinema, no domingo.
Plínio Luersen era o "ás do volante" da época. Seus adversários "comiam poeira".
Nunca mais serei atormentado pelos fantasmas da Emulsão Scott (óleo de fígado de bacalhau) e das pílulas de vida do Dr. Ross. No armário de remédios, a pomada Minancora prometia nunca nos abandonar.
Ainda não sei qual é a diferença entre os fermentos Fleischmann e Royal – que eram comprados "na caderneta", lá na mercearia da esquina.
Piquenique era no Salto ou na Gruta de São Bom Jesus – incluía cesta de lanches, toalha xadrez, formigas variadas e garoa.
Tenho saudades dos presentes de aniversário – e, por extensão, de minha madrinha.
Doce de gila, pêssego em calda, butiá colhido na árvore – sabores e aventuras que perdi.
Amargarei até o fim de minha vida não ter aprendido a nadar.
Neil Armstrong pisou na lua e os meus olhos, diante da televisão, não acreditaram.
Sinto falta da bicicleta que nunca tive.
Gostaria de reencontrar aquelas meninas que, nas manhãs de domingo, freqüentavam a missa das dez. (Ir à missa não era questão de fé: elas iam namorar; eu, na doce ilusão de que uma delas namoraria comigo).
Cinema precisava estar acompanhado por Diamante Negro, Mentex, Pirulito Zorro e balas azedinhas. Depois da "fita", era imprescindível comprar revista em quadrinho (Batman, Super−Homem, Pato Donald).
Ninguém lamenta o desaparecimento do salão de sinuca do Clube 14. Pelo mesmo caminho, sem choro nem vela, seguiram o Café Ouro, o Lanchik e todos os "inferninhos" que forneciam (por preço a combinar) alivio à opressão do mundo.
O paraíso tinha nome: Bazar Danúbio.
Nas festinhas, a radiola portátil tocava – sem parar − Jerry Adriani, Wanderléia, Os Mutantes e outros menos cotados pela "Contigo" e pela "Sétimo Céu". Todo garotão que quisesse estar "na moda" precisava usar calça boca−de−sino e camisa volta−ao−mundo. Tênis de lona, cano alto, All Star, também fazia parte do figurino – mas só nos finais de semana, porque o calçado do dia−a−dia era conga ou kichute.
Os irmãos e amigos mais velhos (acima de 17 anos) dirigiam Karmann Ghia e bebiam "Cuba Libre", "Hi−fi" ou "Porta aberta". Enquanto ouviam Rick Wakeman, Pink Floyd e Janis Joplin, acendiam uns cigarrinhos da "erva maldita".
Não tive canivete (muitos anos depois comprei um Vitorinox – que perdi em situação muito tola).
Meu avô, lá na Coxilha Rica, contava dezenas de "causos" de assombração – momentos em que o terror e o lúdico se confundiam. Jamais vou recuperar essa alegria.
O sonho de todo motorista era dirigir um Fenemê.
"Dijáoji", "trezontonte", "bombiá", "vará" e outras palavras que não constam dos dicionários eram pronunciadas sem constrangimento (acentuando tonicamente a última sílaba)
Meu pai fumava duas carteiras diárias de Continental (sem filtro).
Quem, nos dias de hoje, consegue aquilatar o prazer que senti ao ler as aventuras de Winnetou e Mão−de−Ferro, heróis literários criados por Karl May?
Meu reino por um pedaço de pão "feito em casa"!
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Eta viagem!!!
ResponderExcluir...adivinhe o que brilha mais?
ResponderExcluirO assoalho da mamãe?
Ou o sapato do papai?
Belo texto ... saudade ...
Meu reino por um cigarro de chocolate da Pan
Obrigado
Eis um texto cheio de botox dos dias de hoje que deixou de cara nova e bonita o que já tantas vezes vi em imagens postadas na Internet. Quando o texto é bem escrito, as imagens ficam por conta da nossa imaginação num fotoshop de causar inveja.
ResponderExcluirParabéns. Você é um belo escritor! Abraços.
Livia: Pois é, voltar no passado é "a" viagem! Beijos!
ResponderExcluirPlínio: Tinha esquecido desse slogan. Com tua lembrança, veio outra: a músiquinha das Casas Pernbambucanas: "Quem bate? É o Frio. Não adianta bater,eu não deixo você entrar. As Casas Pernambucanas é que vão aquecer o meu lar."
ResponderExcluirVandash: Obrigado!
ResponderExcluirOlha Raul, essa viagem não é muito longa, não! Foi "ontem", rsrs...Mas ainda procuro manter acesso a alguns desses "lugares", como o doce de gila, o pão feito em casa...sabores de "lar".
ResponderExcluirInfelizmente, as "balas azedinhas", que eram fabricadas pelo meu avô Júlio...infelizmente, nunca mais encontrei igual!
Agora, lendo tua crônica, senti todos os sabores.
Obrigada pela carona!
Vanda: Estamos todos na mesma "viagem"! Beijos, abraços!
ResponderExcluirFiquei nostalgica... tão bom viajar no tempo e lembrar as coisas simples e boas que no fim de contas escrevem a vida.
ResponderExcluirum abraço
oa.s
Oceano AZul. Sonhos:
ResponderExcluirVoltar no tempo é "a" viagem! Beijos!
Pois é, caro Raul, éramos felizes e felizes somos. Porque temos boas lembranças, se não fossem boas , saudades não sentiríamos e sabemos que não somos os únicos a poder realizar "a" viagem. Mas CRUSH encontrei em Chile, parece que aqueles da lembranças eram melhores rsrsrs.
ResponderExcluirA nostalgia é um princípio de morte.
ResponderExcluirVera: tenho a impressão de que as lembranças são mais saborosas do que "na vida real".
ResponderExcluirÉ rapaz, deu saudade! Com certeza, cada um de nós que ler esse delicioso texto, terá algo a acrescentar. Vou fazer minha parte. Saudades de minha lancheira com Nescau - Que graças a Deus existe até hoje - uma banana e os deliciosos biscoitos Mirabel.
ResponderExcluirHenrique: obrigado pela contribuição. Tinha esquecido (ingratamente) do Mirabel!!!!!
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