segunda-feira, 26 de setembro de 2011
ENQUANTO EU IA, ELVIRA VINHA
Demorei mais de mês para ler Nada a dizer, o último romance de Elvira Vigna. Um mês para apenas 161 páginas. Claro que li outras coisas nesse período – alguns ensaios literários e dois dos livros das Crônicas de gelo e fogo. Somando tudo, foram quase 2000 páginas. O último volume das aventuras escritas por George R. R. Martin, 880 páginas, li em menos de três dias. É muito. Ou o suficiente para concluir que algo está errado com o tratamento homeopático que dispensei para o livro da Elvira − algumas páginas em filas bancárias, outras enquanto esperava ser atendido em uma repartição pública. Na maior parte do tempo, Nada a dizer ficou em cima de uma mesa, a esperar por atenção e leitura.
Quais foram os bloqueios que impediram uma leitura mais fluída? Difícil precisar essa imprecisão. A linha−mestra do romance é simples: esposa descobre que o marido está tendo um caso rápido com uma mulher um pouco mais nova ("Porra, logo eu, com uma biografia impoluta, virei a esposa traída dessa novela de quinta categoria!"). Com a obsessão feminina por detalhes, pelo meter o dedo na ferida e ouvir – com prazer, com imenso prazer – os gritos de dor, a narradora, em primeira pessoa, escolhe um tom de autocomiseração, de vitimização: "No olhar dos outros, inscrito o que minha mãe chamaria de destino de mulher. Nasceu com boceta? Vai ser enganada. Traída, humilhada."
Inventário rancoroso de perdas e danos é perfeito em bolero, mas pouco palatável na literatura contemporânea. Repetindo incansavelmente os elementos que caracterizaram a traição (e−mail com senha, chato, fotografia no pen drive, iPod), o samba de uma nota só cansa o ouvido do leitor. Há trechos discursivos, meras repetições do que já havia sido dito antes. Ao mesmo tempo, somente depois de transpor esse redemoinho é que a narradora encontra o esclarecimento. Claro que não há motivos que justifiquem a traição, porque traição é apenas traição, um desrespeito pelo Outro. O que surge desse monólogo histérico (que lembra cena de filme do Ingmar Bergman), como se fosse possível aquilatar o tamanho do engano de uma vida, é o alento para continuar. E, paradoxalmente, continuar junto com o marido.
A dor narrativa é muito pessoal – quase que a dispensar complemento. A amante é descrita como uma ninguém, um nada, uma mulher medíocre a quem a narradora subtrai qualidades, multiplica os defeitos – e que, através de um recurso estilístico, é nomeada apenas pela letra "N". Nas ultimas páginas, a comborça recebe uma última gentileza: a suspeita de ser uma assassina.
Relato extremamente doloroso, repetitivo (que pode ser assim sintetizado: "O meio e o fim das noites eram ocupados com choros, berros e, com sorte, conversas e trepadas".), Nada dizer quer dizer o que é possível dizer sobre o que está reprimido nesse desconforto afetivo que não possui equivalente na relação amorosa. Como em todo lamento de corno, o outro lado não possui voz. O marido é apenas o pai dos filhos, alguém que é citado aqui e ali. Mas, ao mesmo tempo, também é uma sombra retentiva clássica. A narradora o descreve como um adepto natural da traição e do silêncio. Quando ele prefere omitir o relacionamento com a outra, o faz de caso pensado – colocar as cartas na mesa é aceitar a impotência no casamento. Ele não quer enfrentar essa situação, nenhum homem quer. Por isso, e por outros motivos, inclusive o orgulho machista, pouco ou nada diz sobre os acontecimentos. Ciente de que a fala se transforma em ação do falo, o seu silêncio é, antes de tudo, uma forma de preservação física. Sabe que será (metaforicamente, no mínimo) castrado no momento em que assumir, sem qualquer tipo de vergonha, o sexo extra−conjugal. Sem opção, cala. A única voz que o leitor de Nada a dizer consegue ouvir é a voz rancorosa da vítima, a repetir que a vida está repleta de "amores vagabundos".
Neste romance, a esposa é a parte ativa, dominante.
E, como sempre acontece, não é possível ler Elvira Vigna e sair impune. Demorei na leitura por puro medo. Um medo estranho, desses que somente cabe aos homens: o de ser delatado, o de ver no texto o relato das ciladas geradas pelo apêndice masculino. Nem sempre o pênis é motivo para orgulho.
P.S 1) Elvira Vigna escreveu O assassinato do Bebê Martê, Coisas que os homens não entendem, Deixei ele lá e vim, entre outros romances.
P.S 2) O trocadilho do título acima é ruim, mas inevitável. Como dizia meu amigo João Rath: Se perco uma situação dessas, fico sem dormir à noite.
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Bela resenha ...
ResponderExcluirInstigante...
Onde fica a livraria mais próxima?
Muito obrigado ...
Raul, a máfia tem uma expressão para isso, "o silêncio não comete erros". Perturbadora, sua resenha. Agora vou voltar a ler as "Crônicas de gelo e fogo". Tchau!
ResponderExcluircervejaerua: Que tal tentar www.estantevirtual.com.br?
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