quinta-feira, 8 de setembro de 2011
UM LIVRO, UMA ILHA DESERTA
O jornalismo cultural, nas horas em que a imaginação entra em colapso, costuma brincar com indagações infantis. Uma delas é clássica: que livro(s) você levaria para uma ilha deserta? Como sói acontecer nessas complicações que levam ao nada, as melhores respostas são as mais estapafúrdias. Inclusive porque dependem – necessariamente – do histórico da vítima, digo, de quem está respondendo a pergunta.
Se o entrevistado tiver alguma ligação religiosa, o leque é variado: Bíblia, Corão, Baghadav Gita, os textos sagrados dos Vedas, qualquer coisa escrita por Sua Santidade, o Dalai Lama. Basta ter algum tipo de misticismo no meio que até o Livro de São Cipriano (capa preta) passa a ter chance de ser escolhido. Margeando o tema, surge no horizonte o espectro de Homero: Odisséia e Ilíada.
Ainda no âmbito das religiões, O Capital costuma aparecer entre os mais votados – apesar do marxismo ser relativamente inútil em uma ilha deserta. Para a esquerdinha Ballantine´s, que adora se perder nas brumas da consciência política, Antônio Gramsci é uma espécie de são João Batista do martírio social. Aqueles que gostam de "ajoelhar e rezar" nunca alimentam dúvidas: cravam firme no Cadernos do Cárcere.
Freud, Reich, Marcuse, Lacan, Foucault e Marques de Sade integram a lista das possibilidades recorrentes do pessoal que se diverte com "livros que se lêem com uma só mão". Munidos de imaginação fértil e libido desenfreada, os estetas do corpo resolvem suas necessidades básicas manuseando o Kama Sutra ou O jardim perfumado do xeque Nefzaui.
Leitores mais sofisticados apostam em ilhas do tesouro muito particulares: Meditações (Marco Aurélio), Ensaios (Montaigne) ou Mínima Moralia (Theodor Adorno).
A vanguarda literária − essa gurizada que vive a chupar pirulito enquanto decide se quer crescer (física e intelectualmente) − adora passear de barco nesses arquipélagos que são Ulisses (James Joyce), Grande Sertões: Veredas (Guimarães Rosa) e Alice no país das maravilhas (Lewis Carroll).
Como o mundo está repleto de leitores capazes de beber cicuta em lugar de desistir de seus ideais, variados e diversos filósofos (dependendo de quem estiver fazendo sucesso academicamente) costumam ornamentar corações e mentes: Anaximandro, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Descartes, Sartre, Camus, Peter Pan.
As listas e justificativas poderiam se estender pela infinitude do existir. Reconheço que todas são dignas de respeito e alta consideração. Mas... Se, e somente se, tivesse que viver por algum tempo, ou os dias que me restam, em uma ilha deserta e me fosse dado o direito de levar um, somente um, livro para lá, provavelmente escolheria o Dicionário de lugares imaginários, organizado por Alberto Manguel e Gianni Guadalupi.
A explicação é simples: toda a minha vida está relacionada com a literatura. Ou seja, aceitando que o mundo ficcional é esquizofrênico, nos meus melhores momentos de lucidez tive dificuldades para distinguir entre o real e o imaginário. Cenários geográficos onde estive física e mentalmente se confundem − em alguns momentos, não me incomodaria se fossem a mesma coisa. Durante centenas de noites insones, cogitei viver em Pasárgada (Lá sou amigo do rei) − principalmente se contasse com a possibilidade de haver algum portal capaz de teletransportar até a biblioteca da Abadia, onde (diante das estantes abarrotadas, ao lado de William de Baskerville e Adson de Melk) procuraria por incunábulos e iluminuras raros. Se conseguisse chegar até Arkhan, Gondor ou Xanadu, provavelmente me apaixonaria perdidamente durante duas ou três semanas. Na Ruritânia, espada em punho, tudo faria para salvar o prisioneiro de Zenda. Em dias que alternam manhãs de tempestades e tardes ensolaradas, imaginaria romances água−com−açúcar situados em Antares, Pelucidar, Karhide e Ismaélia. Na ilha de Caliban ou em Tubiacanga, sonhando com aventuras que nunca viverei, comporia sinfonias elegíacas. Redistribuiria o meu mapa pessoal: Gothan City, situada no Liso do Sussuarão, divide fronteiras com Camelot, Fortaleza de Bastiani e o Reino de Uidá. Acompanhando Kublai Khan, destruiria as pontes de Filide, enterraria os mortos em Leônia e viveria experiências sexuais capazes de assustar os habitantes de Valdrada. Na varanda do Sítio do Pica−pau Amarelo assistiria diversas maratonas de filmes policiais. Nas ruas de Macondo enlouqueceria suavemente ao lado de Aureliano Buendía. Não havendo escolha, terminaria meus dias em Winterfall.
A ficção é a fotografia que colamos na parede − lembrete de que existem outros mundos nos esperando. Basta acreditar ou abrir um livro.
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Eis minha lista:
ResponderExcluirPassagens (Walter Benjamin), Porque gosto de coleções.
O mal-estar na cultura (Freud), Para gostar da ilha.
Os Sertões (Euclides da Cunha), Porque admiro os fanáticos.
Um homem sem qualidades (George Musil),nunca li.
As mil e uma noites (não a de Antoine Galland).
Em busca do tempo perdido (Proust), porque terei tempo.
Ensaios ( Montaigne), para pensar bem.
Robinson Crusoé (Daniel Defoe), obviamente porque estarei numa ilha deserta.
O único e a sua propriedade (Max Stirner), para ser forte na solidão.
Poesia reunida (Fernando pessoa), para fingir bem.
Rafael R. Schmitt.
Questão de ordem. Encomendei o livro Dicionário de lugares imaginários, organizado por Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Era o impulso que me faltava para ler esse livro.
ResponderExcluirRafael: tua lista é excelente. Mas não é necessário ir para uma ilha deserta. Leia-os - agora!
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