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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

DUAS PALAVRAS E UMA REFLEXÃO SUPERFICIAL SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA


Outro dia, no meio de uma palestra sobre Dom Casmurro (romance escrito por Machado de Assis em 1899), foram citadas duas palavras pouco usuais. Quer dizer, absolutamente obscuras. Pelo menos para os alunos. Alguns professores também as desconheciam (mas, para bem do ensino nacional, fizeram de conta que o assunto não era com eles).

A primeira dessas palavras surgiu quando foi citada uma das muitas manifestações de ciúme de Bentinho: "a certeza de que não era o amigo que estava sendo baixado à tumba, mas o comborço". Comborço? Que raios pode significar essa palavra? Antes que algum engraçadinho perguntasse a diferença entre com borso e sem borso, o mistério não teve vida longa. Utilizando−se de informação colhida no divertido A vida íntima das palavras (SILVA, Deonísio da. São Paulo: Arx, 2002) houve por bem esclarecer que a palavra comborço possui origem controversa. Talvez seja derivada do espanhol combruezo, que une o prefixo latino cum (com) com o radical pellex (enganador/a). Nos primórdios, o vocábulo era atribuído ao doce exercício daquela que os preconceituosos chamam de a mais antiga das profissões. Em português, comborço teve o seu sentido modificado – mas não muito. Machado de Assis a utiliza significando o amante da esposa. Por extensão, também significa a amante do esposo. Alguns autores admitem uso mais complicado: amante de filho espúrio − o que, definitivamente, embaralha a história das relações afetivas e sexuais que envolvem as famílias. No texto de Dom Casmurro, a palavra surge outras vezes, uma das mais famosas aparece quando Bento renega o filho Ezequiel: "(...) era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço, era o filho de seu pai."

A segunda palavra é caso especial: schadenfreude. Como se trata de um vocábulo de origem alemã, e de uso restrito à psicologia e à psicanálise, todos se sentiram desobrigados de conhecê-lo. Talvez, como naquela anedota célebre, não estivessem relacionando o nome com o seu significado. De forma genérica, a junção das palavras schaden (prejuízo) e freude (alegria, prazer) está relacionada com aquele sentimento de bem−estar que, em maior ou menor grau, costuma−se sentir quando tomamos conhecimento da desgraça de algum conhecido (provavelmente desafeto). É o prazer ou alegria de ver o sofrimento ou infelicidade dos outros.


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Alguns anos atrás, o Deputado Federal Aldo Rebelo (PC do B) apresentou um projeto de lei que proibia a utilização de expressões estrangeiras no comercio e nos meios de comunicação. Essa proposta − baseada em desconhecimento da origem etimológica das palavras que compõem a língua portuguesa, na variante falada no Brasil − defendia a pureza lexical. Bobagem. Qualquer estudante da primeira fase do curso de Letras poderia informar ao remake de Policarpo Quaresma que a língua portuguesa não é pura. Aliás, nem mesmo essa discussão é original. No final do século XIX, algumas almas bem intencionadas alertaram, perdão, berraram contra as ruínas que a língua francesa estava espalhando no idioma português. Com o passar do tempo, os galicismos foram sendo dicionarizados. Com maior riqueza vocabular, o português não deixou de ser português por isso.

A língua portuguesa surgiu da união de alguns dialetos bárbaros com o latim e o grego. Em doses menores, o árabe e o espanhol também acrescentaram um pouco de tempero à língua falada no Condado Portucalense. No caso brasileiro, não é possível esquecer as importantes contribuições que recebemos das nações indígenas (Tupi−Guarani, Macro−Jê,...) e das diferentes culturas africanas (Iorubá – ou Nagô −, Quimbundo,...) que escravizamos. Em doses homeopáticas, as línguas italiana, alemã e japonesa, além de algumas outras, também contribuíram para a formação desse samba do crioulo doido que usamos para nos comunicar. Recentemente, seja em razão de nosso sempre visível complexo de inferioridade, seja porque a linguagem tecnológica está atrelada à ideologia do dominador, o idioma inglês anda também fazendo alguns estragos no português. Provavelmente foi essa influência que o projeto de lei do Deputado Aldo Rebelo queria combater.
O português é um organismo vivo, capaz de receber e fornecer contribuições lingüísticas. Ou seja, está em constante transformação. Então, não há o porquê de tentar estabelecer barreiras alfandegárias para algumas palavras. Os usos e costumes determinarão quais vocábulos serão anexados ou eliminados do léxico. Precisa-se apenas respeitar os casos onde há equivalente adequado. Expressões em outra língua precisam ser coerentes. Lojas que utilizam cartazes anunciando 50% off deveriam ser multadas por agressão estética. Por que não utilizar o trivial 50% de desconto? Provavelmente porque é trivial. Na procura por algum diferencial de marketing, a primeira vítima é a língua portuguesa. O verbo deletar é outro exemplo anacrônico. Fruto de um modismo lingüístico, desses que desaparecerão em poucos anos, deve ser substituído pelo elementar "apagar".

Por fim, há que lembrar o básico: a língua falada deste lado do oceano não é igual a do outro lado. Talvez fosse melhor − em lugar de tentar expurgar a influência da língua inglesa no Brasil − procurar entender porque palavras como infantário, caliça, autoclismo, montra, peúga e alcatifa são completamente estranhas ao nosso vocabulário diário.

2 comentários:

  1. Raul, obrigado por expandir os limites do meu mundo, aumentando as fronteiras da minha linguagem. Mas recordo que a tal palavra alemã, era estranha até a um certo psicanalista lacaniano presente no colóquio. Ou estou enganado?

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  2. Rafael, está no texto: "Alguns professores também as desconheciam (mas, para bem do ensino nacional, fizeram de conta que o assunto não era com eles)."

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