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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

OS LIVROS QUE FICARAM PARA TRÁS


Uma amiga espalhou a quem pudesse interessar, e para os fins que porventura fossem necessários, que estava lendo o Ulisses, do James Joyce. Uma página por dia. Levou quase três anos para completar o desafio. E toda vez que comenta a experiência faz caras e bocas, revira os olhinhos, e diz que foi incrível.

Outro amigo, um pouco mais cético, não acredita nesse tipo de maluquice. Adepto da tese de que alguns textos foram escritos para NÃO serem lidos e que o mise−en−scène está acima de qualquer suspeita, algumas vezes faz algum comentário obscuro sobre esta ou aquela obra, freqüentemente "citando" os romanos em latim e os gregos em grego. Paulo Mendes Campos, em crônica antiga, chamou esse proceder de o cinismo dos vencedores. A idéia geral que edulcora essa desfaçatez é que poucos realmente leram os grandes clássicos e que uma camada mínima de verniz cultural é suficiente para gerar renome de humanista garantido (outra vez Paulo Mendes Campos). Em outras palavras, no mundo das aparências intelectuais, é possível dizer as maiores barbaridades correndo um risco ínfimo de ser desmascarado.

Na crônica citada acima, e publicada em Os bares morrem numa quarta-feira, o irônico Paulo Mendes Campos defende a idéia de que basta ler a primeira frase para conhecer o livro inteiro. Exemplifica com Kafka, André Gide e Maquiavel. Poderia ter escolhido outros autores, mas esses dão conta do recado.

Por fim, dá um conselho precioso para quem sente prazer em "fazer bonito", mas sem se aprofundar nas conversas literárias:

(...) em se tratando de escritores portugueses, elogie o sabor da sintaxe lusíada; escritores franceses, a finura, digo, a "finesse"; escritores germânicos, a densidade; inglês, o "fog" poético; eslavos, a psicologia inesperada; asiáticos, o misticismo milenar; africanos, o primitivismo; brasileiros, a força telúrica; norte−americanos, os fabulosos direitos autorais.
Restam praticamente os autores hispano−americanos e os australianos. Comente a imaturidade dos primeiros, "apesar de certo surto renovador nos últimos anos". Quanto aos escritores da Austrália, mude habilidosamente a conversa para uma discussão se canguru joga ou não joga boxe. Todos vão adorar...


De minha parte, estou reservando a aposentadoria (que não sei se virá ou quando virá) para a prática desse saboroso esporte que é a leitura dos clássicos. Evidentemente Dostoievski, Conrad, Henry James, Flaubert, Balzac, Dickens, Sartre, Camus e Thomas Mann costumam freqüentar a cabeceira da minha cama. São autores que não ficaram para trás. E que sempre me acompanharam. Sem o que essa gente escreveu não é possível imaginar a carpintaria literária. Por outro lado, tenho visível débito, por exemplo, com A procura do tempo perdido (Marcel Proust), A divina comédia (Dante Alighieri) e algumas das tragédias de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. Os exemplares parecem acenar lá das estantes, mas finjo não os ver. Sei que não é justo, mas... quem sabe no ano que vem!?!?

Se tivesse tempo e dinheiro, queria repetir o gesto de um terceiro amigo que, certa vez, comprou uma coleção completa do Shakespeare, não lembro quantos volumes, talvez uns vinte, talvez mais. Como faz algum tempo que não o vejo, imagino que a essas alturas do campeonato deve conhece todos os textos de cor e salteado. Provavelmente recita, nos dias de sol, seus trechos favoritos – no original e em diversas traduções, que uma só não basta para quem escolhe um autor como companheiro nesse desatino que costumam chamar de existir.

Se tivesse tempo e dinheiro, não deixaria para trás todos os livros que ainda não li. Livros que, se tiver sorte, ainda vou ler.

(Unidos pela amizade e pelos livros: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Paulo Mendes Campos)

3 comentários:

  1. Olá Raul!

    Belo texto.
    Eu também tenho muitos livros que deixei para trás, muitos clássicos que ainda tenho a pretensão de ler, e que assim como os seus, vivem na estante esperando a oportunidade de serem lidos.

    Um abraço,

    Wellington Ferreira, O Vendedor de Livros

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  2. Lindo texto,Raul.Meu Ulysses também acena lá ns fila de espera.

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