Hollywood nunca deu folga para aqueles que imaginam haver vida inteligente fora dos padrões capitalistas. Não bastasse a desculpa de que cinema e literatura utilizam−se de linguagens diferentes − muitas vezes conflitantes −, a vontade mórbida de ganhar dinheiro com as ruínas produzidas pelo desrespeito com a história cultural também ajuda a ampliar esse proceder.
Sob a discutível alegação de que o cinema consegue captar as características mais importantes de algumas narrativas em que a ação supera a descrição, uma tendência relativamente freqüente nos últimos 30 anos é a adaptação cinematográfica de determinados clássicos literários. Algumas histórias−em−quadrinhos também foram atingidas por esse flagelo. Batman, Super−homem, Hércules, Tarzan, James Bond e dezenas de outros heróis e super−heróis foram transpostos para projeção em tela grande. Sem se importar que parte significativa do imaginário ficcional fosse jogada na lata de lixo (e sem direito à reciclagem), os produtores de filmes elaboraram um catálogo de cenas e maneirismos que devem ser repetidos constantemente para que as bilheterias batam recordes de arrecadação. Final feliz e brigas coreográficas são dois ingredientes indispensáveis.
A última vítima (conhecida) da ganância insana que rege a superficialidade do cinema comercial foi um dos grandes detetives literários, Sherlock Homes. Vários filmes com esse personagem foram feitos em diversas épocas da história do cinema – alguns passáveis, nenhum que merecesse consideração. Acreditando que o desastre não estava completo, Hollywood apostou, recentemente, nos atores Robert Downey Jr e Jude Law para recriar os personagens criados por Sir Arthur Conan Doyle.
Evocar, com alguma imprecisão, diversos detalhes de Um estudo em vermelho e O cão dos Baskervilles, que li na adolescência, causa prazer. Em contrapartida, nada é possível recordar do primeiro Sherlock Homes (Dir. Guy Richie, 2009), que vi a somente dois anos. Será que a memória criou algum tipo de bloqueio contra algo que considerou despropositado? Provavelmente. Na versão literária, o morador de 221B Baker Street é um homem sedentário, usuário de cocaína (algumas vezes, morfina), dono de uma inteligência inigualável − capaz de associar o invisível e o improvável em segundos. Muitas vezes se mostra capaz de resolver os enigmas sem sair do apartamento em que mora. Quem estabelece a conexão entre esse ser quase vegetativo e o mundo urbano, pré−industrial, governado pela rainha Vitória, é o seu biógrafo, médico e amigo, John H. Holmes, que, contra todas as regras do bom senso, além de suportar as idiossincrasias de Holmes, as incentiva. Em síntese: Sherlock é o protótipo do detetive cerebral, capaz de fornecer explicações para mistérios pouco ortodoxos.
No mundo iletrado do cinema de ação, Sherlock Holmes se transformou em Bruce Lee. Impossível não pensar nessa possibilidade ao assistir Sherlock Homes 2 – O jogo das sombras (Dir. Guy Richie, 2011). A pancadaria começa na primeira cena e parece nunca mais terminar. Embora o Sherlock literário se apresente como um aficionado do boxe, além de dominar a esgrima e arte de usar da bengala como arma de defesa e ataque, raramente se mete em complicações físicas. Pacifista, abomina quem utiliza pistolas, espingardas e canhões. O cérebro é a sua grande arma.
O enredo de Sherlock Holmes 2 - O jogo das sombras apresenta tanto non-sense que somente aqueles que ignoram (ou desprezam) a literatura conseguem se divertir. O combate entre Sherlock e Moriarty fica diluído por explosões, lutas corporais com cossacos, ciganos anarquistas, efeitos especiais e uma tonelada de bobagens. O prazer estético e intelectual é substituído pela descarga continua e ininterrupta de adrenalina. Com exceção de algumas ridículas sutilezas humorísticas e da divertida participação de Stephen Fry (interpretando Mycroft, o irmão mais velho de Sherlock), todos os demais ingredientes do filme provavelmente teriam ofendido mortalmente Sir Arthur Conan Doyle.
O Sherlock do cinema é a antítese do Sherlock literário. Como isso se tornou possível? Quando a arte se transforma em um produto comercial, quando perde a identidade ou ganha uma nova (oposta à origem), o capitalismo triunfa. E a barbárie se estabelece – como se fosse dona de nossos corações e mentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário