Roberto Bolaño foi o último mártir a ser canonizado pela literatura mundial. Sua morte de insuficiência hepática, em 2003, aos 50 anos, no auge do potencial criativo, renovou o mito ideológico da pequena−burguesia de que a arte é um dos portais para a imortalidade. E pouco importa se a lenda impressa combina minimamente com os fatos ocorridos ou imaginados, porque um dos muitos objetivos da literatura é ser confundida com a vida que poderia ter sido e que não foi.
Em 1968, aos 15 anos, a família de Bolaño se mudou do Chile para o México. Em 1973, Roberto resolveu voltar para casa, disposto a viver o sonho proposto pelo governo socialista de Salvador Allende (eleito em 1970). Por um desses caprichos da sorte (ou do azar) escolheu conhecer primeiro o continente. Segundo o que ele mesmo escreveu sobre essa tumultuada viagem de ônibus, foi uma espécie de a viagem iniciática de todos os jovens pobres latino−americanos. Depois de inúmeras aventuras, chegou ao Chile na véspera do golpe militar promovido pelos asseclas de Augusto Pinochet. O inevitável aconteceu: foi preso. Como se fosse um dos capítulos de algum dos romances que Roberto escreveria vinte anos depois, o acaso surgiu outra vez: um dos guardas tinha sido seu colega de colégio. Foi com a ajuda desse amigo que conseguiu fugir.
Essa história mirabolante e pouco crível talvez tenha sido a gênese de um dos textos seminais da literatura de língua espanhola. As 622 páginas de Los detectives salvajes, vencedor do prêmio Rómulo Gallegos de 1999, estão divididas em três partes assimétricas que glosam (e gozam de) diversos gêneros literários, incluindo nessa brincadeira quase borgeana, quase espetáculo inverso do jogo da amarelinha proposto por Cortázar, romances de formação, novelas epistolares, fragmentos de diários, narrativas de viagem e histórias policiais.
Em Os detetives selvagens, conforme o diário de Juan Garcia Madero, parte da juventude literária mexicana dos anos 70 do século XX se reunia em torno de Arturo Belano e Ulises Lima, os criadores do realismo visceral. As cenas que constituem a espinha dorsal da segunda parte do enredo estão pontuadas por (cerca de 50) narradores múltiplos que, por vias transversas, muitas vezes em episódios que parecem estar desconectados com a história principal, contam a loucura que resultou na procura pela desaparecida poetisa Cesárea Tinajero na imensidão do desértico estado de Sonora, a nordeste do território mexicano. Na parte final, centrada em 1976, o diário de Madero estabelece o fecho para a peripécia protagonizada por Belano e Lima, embora deixe o leitor perplexo, a se perguntar se não precisa reler o texto, visto que, assim como alguns truques de prestidigitação, algum fio parece ter ficado solto, a reter o entendimento sobre o que aconteceu, como aconteceu e o porquê de toda essa ilusão.
Em outro romance, Noturno no Chile, Bolaño também criou uma trama quase surrealista, onde o protagonista se envolve em uma situação constrangedora: sacerdote, poeta e crítico literário ministra aulas de marxismo para a Junta Militar. Ao mesmo tempo, frequenta saraus em uma casa que também é utilizada para torturar presos políticos.
Os fantasmas do autoritarismo se repetem diversas vezes, romance após romance, na obra de Bolaño, denunciando o avanço inexorável da barbárie, do fascismo militar e da negação dos direitos humanos mais elementares. O exemplo mais evidente se encontra em La literatura nazi en América, em que conjuga o mito de Janus, o deus romano de duas faces: entre o torturador e o poeta, entre a vanguarda e o autoritarismo, a humanismo desaparece, soterrado pela ausência de razão.
Estrela distante, Amuleto e Putas Assassinas são alguns dos títulos que impedirão que o nome do escritor nascido em Santiago de Chile, em 1953, seja esquecido. Seu testamento literário, o inacabado 2666, foi planejado, por razões econômicas, para ser publicado em cinco volumes. Com uma estrutura híbrida (romance policial, ensaio filosófico e comédia), a narrativa esta centrada em uma história que em alguns momentos parece se aproximar de Os detetives selvagens, em outros se afasta de qualquer modelo estrutural proposto anteriormente.
Bolaño foi (ainda o é) um ícone dos escritores de língua espanhola. Tanto que alguns amigos o transformaram em personagem em, pelo menos, dois romances: Mantra, escrito pelo argentino Rodrigo Fresan (outro malabarista da carpintaria narrativa) e Soldados de Salamina, escrito pelo espanhol Javier Cercas.
Em alguns momentos - os dias difíceis de um escritor que somente começou a publicar quando tinha 40 anos -, Roberto Bolaño precisou engolir o orgulho. Com esposa e filho pequeno para sustentar, morando em Espanha, qualquer emprego era agarrado com as duas mãos, tábua de salvação para quem ainda alimentava a esperança de não morrer de fome. Em um desses momentos foi vigia noturno de camping (episódio recriado no romance Pista de gelo).
Segundo Javier Cercas,que foi seu amigo, a coragem e honestidade invioláveis com que Bolaño assumiu sua vocação de escritor e o fato incontornável de que ele é, até onde sei e ao menos até que alguém se apresse a provar o contrário, o escritor latino−americano mais imprescindível de sua geração.
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