Algumas pessoas fazem da felicidade uma forma de transitar pelo mundo.
Para elas, estar alegre é elemento natural, dádiva dos deuses, atravessar a rua sem traumas. Então, sem medo, frequentam festas, cultivam amigos, livros, parentes e animais de estimação, conversam sobre poesia, viajam e regressam – os álbuns de fotografias engordando, testemunhas silenciosas dos encontros que promovem com a paixão.
Gilca Maria Silva não teme os obstáculos e os sonhos. Talvez seja por isso que a sua presença desafia o imponderável, contagiando a todos com um delirante estar de bem com a vida.
Dublê de artista plástica, mãe de quatro filhos, avó de sete netos, Gilquinha (como é chamada por aqueles que privam de sua companhia) segue um calendário intermitente de novidades, a alma em constante inquietação. Por exemplo, diante das telas em branco, tenta mostrar que o assombro está em nossos olhos. Por isso, não fica quieta e, como uma criança travessa, quando ninguém espera, muda o estilo, mergulha em outra fase – o novo e a procura iluminando mundos antípodas, que se entrelaçam pela ação do desejo. Uma lição de querer, o exprimir dos sentimentos e da arte.
Transitando entre naturezas mortas, madonnas, cubismo – cores fortes e vibrantes −, tudo é tema, forma e desafio, o resgate de um mundo íntimo, rosa a desabrochar no jardim das delícias.
Habitando uma casa imensa, sempre aberta aos amigos, Gilca insiste que a sua vida seja pontuada por algumas liberdades poéticas. Ao lado de Fred Frederico, o seu poddle de estimação, adora tomar chá no meio da tarde. A bebida é servida em legítimo aparelho de porcelana inglesa. Sou a visita diária de minha casa. Tudo o que tenho é para ser usado.
A mesa sempre farta: pães, bolos, geleias. Invariavelmente, algum convidado a lhe fazer companhia. Não estou mais em idade de cultivar a solidão, afirma baixinho, porque esse assunto, idade, é tabu. Minha mãe não se interessa pela cronologia das ilusões. Ela sabe que viver é um ato de imaginação, de criatividade, define Janara Helena, a filha mais velha.
Na luta para colocar cor na vida, Gilca não hesita em transformar os seus sonhos em matéria−prima para essa loucura que é o existir. Com roupas coloridas, às vezes extravagantes, atravessa as ruas da cidade com a mesma jovialidade com que o seu nome aparece nas colunas sociais.
As roupas fazem parte de minha personalidade. Não gosto da tristeza. Um vestido vermelho e um bom perfume ajudam a afastar os pensamentos ruins. É preciso saber aproveitar os prazeres que o dinheiro pode comprar.
E, nesse ritmo, Gilca ignora qualquer coisa que esteja distante de seus planos. Ela sabe o que quer. Por exemplo, antes de viajar para os Estados Unidos (foi aceita para um curso de artes plásticas), contratou um professor de inglês. Provou para os amigos, que reagiram incrédulos à ideia, que não estava cometendo nenhum desperdício – apenas um investimento. Em três meses dominou o básico. Depois disso, na terra dos gringos, aproveitou as palavras dos mestres. Voltou contente, irradiando emoções, uma paz de espírito que há muito não sentia.
Mas não é somente isso. Gilca vai a todas as festas que pode. Aliás, a sua vida social é uma agitação sem fim. Além de pertencer a vários clubes filantrópicos, também presidiu a Associação Planaltina dos Artistas Plásticos. Meu objetivo maior, atualmente, é trabalhar pelas artes e pelos artistas, explica. E nessa luta muitas vezes inglória se desdobra para conseguir patrocínios, organizar vernissages e promover os artistas iniciantes. A pintura é o meu alimento espiritual, declara.
Nas festas, revive o passado, uma imensidão de histórias desfilando (em flash back) diante de seus olhos, as muitas vezes que atravessou o salão de danças nos braços do esposo (já falecido), as amizades que se perderam no passado e as que se solidificaram, um eterno relembrar de um tempo que não existe mais – exceto na memória.
O passado é como uma dessas pérolas que fazem faiscar os nossos corações, uma espécie de música ao entardecer, filosofa.
Junto dos artistas plásticos inventa jantares. Fantasias. Patuscadas. A conversa rola solta, animada pela mais pura e suave descontração. Informações são trocadas, abraços fraternos. Muitos projetos nasceram desses momentos. Certa vez participou de desfile de escola de samba. No carro alegórico regeu o desvario, mostrou na avenida que a arte não pode, e não deve, ficar trancafiada nos atelieres.
Existem também as surpresas. Um dia, Gilca resolveu visitar gavetas, depósitos de um tempo que já cumpriu a sua finalidade. Escondidos da luz e dos olhos ávidos dos curiosos, alguns manuscritos. Trouxe−os para perto de nós e, depois de várias leituras criteriosas, alterou vários desses escritos. O passo seguinte foi perder o escrúpulo e jogar fora outro lote. Como resultado de tamanho esforço, publicou um livro. De poesias. Coração Inquieto não foi exatamente um best−seller. E daí? Nos seus versos encontramos leveza e ingenuidade, coisas só possíveis em quem acredita que escrever é uma forma de conversar com Deus. E nesse diálogo, o que não falta é ternura – Gilca sabe que Ele é onipotente, protetor de todas as horas.
Então, quando perguntada se tem algum plano para as emoções que ainda vai viver, Gilca responde com outra pergunta: De que adianta querer fazer planos, estabelecer metas, controlar o futuro? E complementa, rápida e certeira como a flecha de um arqueiro zen: Importante é viver, uma embriagues de horizontes e doçuras. E que o resto seja azul e ensolarado, como só podem ser azuis e ensolarados os amanheceres no planalto catarinense.
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P.S.1): Este perfil (publicado originalmente no suplemento Anexo, do jornal A Noticia, de Joinville, Santa Catarina, em 04 de agosto de 1997) sofreu poucas alterações. Congelar o texto, em alguns momentos, é o esforço que devemos exercer contra a vulnerabilidade do tempo. A mudança de alguns tópicos ou da escrita implicaria em desmoronamento da arquitetura textual.
P.S.2) Dona Gilca faleceu em novembro de 2021, aos 100 anos de vida!
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