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quarta-feira, 20 de abril de 2011

CÂNTICO EM CINCO ATOS PARA NEREU GOSS


I
Depois de procurá−lo pelos quatro cantos da cidade e de ouvir mil e duas sugestões sobre onde poderia encontrá−lo (Florianópolis, o bar da esquina, o bar da outra esquina...), ele apareceu em frente à Prefeitura, armado de sorriso arteiro e leve ar de melancolia. Havia passado outra temporada no inferno, i.é., esteve internado, mais uma vez, para desintoxicação alcoólica. Mas, não havia perdido as suas iluminações: é um poeta. Um tipo muito especial de poeta. Daqueles que nunca publicaram um único verso. Daqueles que preferem viver os poemas que o papel nunca registrará.

Aos 71 anos, Nereu de Lima Goss está rejuvenescido, cheio de vida e de planos. Quer terminar o livro que está escrevendo. São "irreflexões", pensamentos, máximas, histórias... Quer, também, viver mais, muito mais. Principalmente agora que está aposentado, que não precisa se submeter à mediocridade do serviço público, que pode caminhar livremente pelas ruas e pelos bares ("Por favor, não contem para os médicos!"), que não precisa desempenhar o papel de "escravo grego de general romano" – segundo a famosa e filosófica definição de Paulo Francis.

II
Quando o conheci (lá pelos idos de 1975, mais ou menos), ele usava um casaco xadrez e cheirava a cerveja. Muita cerveja. Foi em concurso de poesia. Era um dos jurados. Depois que os rituais se cumpriram, e ele se livrou do pedestal incomodo em que o haviam posto, tivemos uma aula de inteligência. A voz rouca, a língua levemente travada pela bebida, a emoção e os versos que fluíam pela sua mente, com uma rapidez estonteante, logo nos mostraram um mundo novo, cheio de promessas e belezas. E bem diferente da chatice acadêmica da escola. Sua mão nos conduziu para os domínios de Drummond, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo (e o poeminha da rua, da lua e da porta), entre outros. Foi uma revelação, um "satori", um "insight", uma explosão, o universo se abrindo diante de nossos olhos ignorantes.

Muitos anos depois, muitas noites consumidas entre álcool, conversas, conselhos: vejo nos seus olhos o toque do mestre, a defasagem entre aquele que faz a diferença e os outros. Entre catedrais e botequins, Nereu bebia da sabedoria através da emoção sonora da linguagem. A textura da imagem, a linguagem, a lucidez e o verbo, o prazer e o sentimento, o copo viajando entre a mesa e a sede – emoção e tempo, o espaço devorado pelos movimentos, a câmara fotografando o passado e o presente. Estar presente neste momento – haverá maior presente?

III
Palavras, poemas, piadas. A vida nem sempre transcorre como a sonhamos. Às vezes é melhor. Às vezes é apenas a constatação do óbvio. Nasceu em Bom Retiro (SC) e morou quase vinte anos em Porto Alegre (RS). Seu pai era escrivão. Foi à escola diversas vezes. Flertou escandalosamente com a universidade: dois anos de engenharia civil (em Porto Alegre), um ano de ciências sociais (Uniplac) e oito anos de direito (Uniplac) – freqüentou as aulas até o instante em que algum burocrata idiota decretou que havia jubilado. Às vezes pensa em fazer vestibular, outra vez, e "terminar aquela porcaria!". Ainda não decidiu. Talvez não tenha mais o fôlego dos sessenta anos, quando deixou alguns adolescentes (colegas de aula!) cortarem o seu cabelo e, estoicamente, sentado em carteira escolar, reuniu paciência para ficar ouvindo (habitualmente, dormindo) a cátedra dos bacharéis. Seu mundo é outro.

Foi funcionário da Prefeitura de Lages durante trinta e cinco anos. Resistiu a onze alcaides. Uma vez foi nomeado interinamente diretor do Departamento de Obras. Comprou um terno novo e passou a tomar os seus aperitivos no bar do Lages Hotel. Dois meses depois voltou às origens, ou seja, ao Cube 1° de Julho. Concluiu que os "gigolôs de vacas" são muito chatos. E que os cargos em comissão não passam de uma carga sem remissão. Melhor a leveza do ser. Por fim, Nereu "esteve", algumas vezes, arquivista, datilógrafo e desenhista (tipográfico e arquitetônico).

IV
Assistiu a ascensão e queda de "n" instituições culturais. E provinciais. Aprendeu a distinguir os talentosos dos medíocres. Sobreviveu a muitas guerras. Instantes nem sempre felizes que a memória revive com uma cronologia incerta. Colaborou com a "Revista Sul". Culpa do Salim Miguel e do Guido Wilmar Sassi. Rabiscou um artigo sobre Walt Disney e alguns de seus bicos−de−pena ilustraram uns dois ou três artigos alheios. Pequenas vaidades. Mas o que gostava mesmo (ainda gosta) era de sentar em mesa de bar e, entre rios de cerveja, ficar a jogar conversa fora com os amigos. Houve um tempo em que não escondia ao orgulho de conhecer todos os bares de Porto Alegre e Lages. Agora, se contenta com o quiosque da esquina. A experiência de mais de cinqüenta anos de doce embriaguez lhe ensinou que a bebida tem o mesmo sabor em qualquer lugar – o que muda é o barman. Assim, tendo competência, qualquer um serve.

Múltiplo. Escreveu o roteiro do curta−metragem "O parque", dirigido por Joaquim Rheigantz. Pintou aquarelas. Coleciona caricaturas, livros e amigos. Catalogou milhares de filmes (e os assistia sempre que possível). Foi crítico de artes plásticas durante uns trinta anos. Adora as artes cínicas, digo, cênicas (a sala do teatro−de−bolso do SESC, em Lages, tem o seu nome) e acredita que beber cerveja é uma forma de ouvir música.

V
É um "flaneur". Seus modos de encarar e entender a vida são irreverentes (para os conceitos burgueses). Sabe que viajar é melhor do que ficar. Prefere o deslocamento. Travelings emocionais. Mudanças de paisagens, carregando as cicatrizes do existir. Assim como um personagem do Wim Wenders. Talvez. Road movie. Anjo urbano. Lúcido no meio da loucura contemporânea, lúdico na arte cavalheiresca do arqueiro zen. Sem os signos da perda, com a avidez de quem ainda consegue sonhar, bêbado de felicidade.

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P. S.: Apesar dos riscos que caracterizam a literatura datada, conservei a estrutura original do texto publicado na capa do suplemento Anexo do jornal A Notícia, em 22 de fevereiro de 1996. As mudanças foram pontuais, correções de estilo ou de gramática.

Nereu de Lima Goss faleceu em 2004, aos 80 anos.

7 comentários:

  1. Tive a felicidade de trabalhar com o querido e genial NEREU, digo que foi uma honra, pessoa rara com quem só aprendi ( e muito ). Certa vez me convidou para alguns "tragos" - para lubrificar a fala claro, fraco não pude acompanhá-lo então ele me acompanhou até o serviço . . . cheguei lá recomposto . . . na "prêfa".
    Valeu senhor Raul, muito legal lembrá-lo, valeu "Tio Nêra". "Da vida nada se leva" (vejam o filme com este título - 1936).

    Ah! Tenho uma história dele:

    Uma vez chegou um cidadão perguntando sobre fulano de tal, na "prêfa", e Tio Nêra respondeu prontamente: ""tava" aqui, já saiu e não sei para onde foi. Assim, o homem se debandeu, deixando-nos trabalhar consentradamente. Não me lembro quem indagou Tio Nêra perguntando: "Mas o que foi isto? Tu nem sabe de quem ele estava falando, ou sabe?". Responde sabiamente Tio Nêra:
    "É claro que não sei mas, já pensou o tempo que eu perderia se soubesse? Quanto dispêndio em blá-blá-blá ...Até nos darmos conta de que fulano de tal não se encontra por estas bandas mesmo?" - Nossa!!!! Tremenda aula de filosofia-social-econômica-polítco-prático-...

    Tio Nêra, de onde você estiver...por nós há de esperar!

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  2. Obrigado, João Eduardo. Vou acrescentar essa história que você narrou no outro post, posso?

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  3. Olha Raul. Custa-me ler teu Blog, nesses arroubos de saudável saudosismo. Lembrar Tio Nêra, João Rath, "Cabeção" e outros queridos é bom, mas traz sempre alguma dor... Que bom que pude conhecê-los, ainda que pouco. Que bom que tenho memórias caras desse bando de loucos. Acho que vou ajustar minhas lentes, meus cartões de memória e meu gravador, porque creio ter perdido coisas imperdíveis. Enfim, é bom ler. Obrigado.

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  4. Ah, tem duas que presenciei do Tio Nêra. A da letra de cinco brahmas e a da cachaça combatida.

    Enquanto cursava um pedaço da faculdade de Direito da UNIPLAC comigo, Tio Nêra pediu-se anotações de aulas de um dos professores, dizendo que as tinha mas só conseguia ler as que estavam anotadas com letras de 3 ou 4 brahmas, porque as anotações com letras de cinco brahmas realmente não conseguia ler nada.
    Em outra ocasião, em palestra sobre alcoolismo parabenizou o orador dizendo que realmente a cachaça tinha que ser com batida.... ou de limão ou de maracujá.... (ah Tio Nêra).

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