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terça-feira, 5 de abril de 2011

ARTES E PERIPÉCIAS DO ILUSTRE E MUI ARDILOSO MORÔ



Cezarino José Ramos era um personagem de Federico Fellini. Tinha os olhos oblíquos, o corpo ligeiramente curvado e uma aposentadoria do INSS. Era um pouco gordo e nunca foi considerado um dos dez mais elegantes de Planalto Catarinense − embora jamais tivesse se preocupado com essas futilidades. O seu mundo era outro. De que importam smokings, summers, blaisers, colunas sociais e outras bobagens para um homem que teve como ocupação profissional mais importante vender rifas?

Conta a lenda que, quando chegou a Lages, aos 14 anos, vindo de Correia Pinto, tinha muitas dificuldades para articular os sons. Normalmente só conseguia balbuciar um "ô lôco!", que funcionava para exprimir todas as categorias gramaticais, além das suas emoções. Esse desajeito era a sua maneira de se comunicar com o mundo. Depois, com o passar do tempo, foi aprendendo os fonemas, distinguindo os significados, estabelecendo comparações, musicando as frases. Na escola da vida, aprendeu as noções básicas de fonoaudiologia, lingüística e semiótica. Mesmo assim tinha a voz arrastada, difícil de ser entendida.

Quando as pessoas queriam saber se ele havia compreendido alguma coisa, perguntavam, usando uma expressão corrente da época: "Morô?". A resposta era imediata: "Morô!". E nesse ping−pong surreal o apelido acabou se estabelecendo. A partir desse instante, Cezarino se transformou em Morô. E isso está tão enraizado no inconsciente coletivo dos serranos quanto o amor de Cezarino, digo, de Morô, pelo Vasco da Gama.

Sim, ele viveu uma paixão sofrida e ardente pelo time de futebol do seu coração. Era um sentimento obsessivo. Quando o Vasco esteve em Lages, em 1976, para um amistoso, Morô correu pelas ruas da cidade atrás do ônibus da delegação. No hotel, com o rosto molhado pela alegria, fez vigília. No campo, durante o jogo (vestido a caráter: calção, camiseta, chuteira), vibrou tanto com o 2 x 1 do seu time contra a equipe local, o Internacional, que a cada gol vascaíno deu uma volta olímpica pelo estádio. Há quem diga que foi o seu momento de glória – para espanto dos principais jogadores da equipe cruzmaltina: Mazzaropi, Roberto Dinamite, Ramon e Abel.

(da direita para a esquerda: Morô, João Carlos Leão, Roberto Dinamite, Servilio Ferreira e Luis Carlos Xavier). Arquivo de Fernando Leão.

Durante muitos anos, perdeu a paciência com a cartolagem do Vasco. Com uma letra redonda e um pensamento absolutamente límpido (se é que isso é possível quando o assunto é futebol) escrevia longas cartas à diretoria do clube, sugerindo mudanças no plantel ou a troca de alguns integrantes da comissão técnica (inclusive o treinador). Enfim, manifestava o seu descontentamento.

Quem está na chuva acaba molhado. Então, vez ou outra, recebia respostas falsas do Vasco. Alguns conhecidos, envoltos em pura sacanagem, montavam o cenário teatral. Quando Morô descobria a trapaça, a ira tomava conta do ambiente. Mas isso era raro. Inclusive porque ele aprendeu a conviver com essas brincadeiras.

Outras coisas ele nunca conseguiu esquecer. E isso significou o atropelamento do destino, na estrada dos sonhos desfeitos. Torcedor fanático, costumava tratar como inimigos todos aqueles que se mostravam contrários ao Vasco. Comentários sem pretensões se transformavam em ofensas gravíssimas. O comerciante João Daniel Duara amargou muitos prejuízos em uma dessas historias. Alguns "corneteiros−de−plantão" inventaram que ele era feiticeiro e que estava fazendo um "trabalho" contra a equipe cruzmaltina. O Galáxie do comerciante apareceu todo riscado. Algum tempo depois, um vândalo começou a agir toda noite, quebrando os vidros de sua banca de revistas. Daniel resolveu fazer "uma espera". Confirmou o que era mais do que uma simples suspeita. Morô foi apanhado em flagrante. Alegou "legítima defesa", estava defendendo a honra do Vasco.

Dois vascaínos: Moro e o pai de Maria Aparecida Souza da Silva
(que enviou a foto)

Mas nem só do Vasco viveu Morô. O seu ganha−pão era a chamada "rifa eterna". Eterna? Pois é, houve quem dissesse que era sempre a mesma. Intrigas da oposição, óbvio. O que nunca foi possível negar é que... havia algo de estranho nessa história toda. Sem profissão definida, com dificuldades motoras (uma vez tentou ser auxiliar de cozinha – não deu certo), Cezarino optou por fazer pequenos trabalhos que lhe pudessem render alguns trocados. Com o passar do tempo, entrou no ramo das loterias. Primeiro, bilhetes da Federal; depois, pequenas rifas. Com habilidade matemática razoável, percebeu que as rifas eram mais rentáveis. Tornou−se um profissional do ramo. O único problema é que... dá para contar nos dedos (de uma das mãos) os ganhadores conhecidos. No entanto, como garantia o comerciante Walter Gill de Souza, isso não era de todo verdade: "Ele entregava, sim". E acrescentava, logo em seguida: "Desde que fosse conveniente".

De qualquer forma, existem pelo menos dois casos públicos e notórios de pessoas que receberam os prêmios. Um deles é o advogado Jorge Barroso Filho. Conhecido pelo seu mau humor cáustico, Barroso, em determinada oportunidade, assinou uns dois números de uma das rifas. Sem a mínima intenção filantrópica, ele queria, na verdade, se "livrar" da presença incomoda e indesejada de Morô. Além disso, o prêmio era insignificante: uma galinha assada – que era carregada, prá lá e pra cá, debaixo do braço, como se fosse um troféu. Não valia a pena se incomodar com o resultado. No entanto, para surpresa do advogado, na manhã seguinte, o nosso herói bateu em sua porta. Queria cumprimentar o ganhador e entregar o prêmio. Barroso tentou recusar a honra. Irredutível, Morô passou o prêmio às mãos do advogado, que ficou com a galinha ensebada nas mãos, sem saber o que fazer.

Em outra oportunidade, o caso foi diferente. O comerciante João Daniel Duara estava passando por situação financeira muito ruim. Praticamente falido, não tinha dinheiro nem para o cafezinho. Inclusive, estava pensando em ir morar em outra cidade – pelo menos até a maré de azar passar. Inesperadamente recebeu a notícia que havia ganhado uma enorme cesta de natal. "Deve ser um presente dos céus", comentou com um amigo. Só poderia ser: ninguém ganha alguma coisa sem jogar. Na duvida foi até a loja em que a cesta estava exposta e fez questão de receber o prêmio – que foi doado para os velhinhos do Asilo Vicentino, logo em seguida.

A moral dessa história surgiu logo depois: informado que Daniel estava viajando, Morô "deu um jeito" para que o comerciante fosse o vencedor. Assim, faria uma "média" e diminuiria o boato de que ninguém recebia os prêmios das rifas que promovia. Era um plano simples e baseado em lógica elementar: alguns dias mais tarde, em virtude do não comparecimento do ganhador do premio para reclamar o ganho, Morô iria confiscar a cesta e, em seguida, promover nova sessão de apostas. Fácil como roubar doce de criança. O único senão foi que Daniel voltou mais cedo da viagem e... estragou a festa.

Pequenas travessuras. Coisas menores. Artimanhas da sobrevivência. Alguma forma maluca, provavelmente inconsciente, de dizer: "tudo é permitido, se for divertido".

No outro extremo da idiossincrasia humana, Morô era um homem supersticioso, influenciável e cheio de manias. Entre outras coisas, não tolerava que fizessem o sinal da cruz nas suas costas. "Dá azar", reclamava candidamente.

Muitas vezes se comportava como criança grande. O barbeiro Waldir Buck, o "Perereca", lembrava de episódio ocorrido alguns anos antes. Morô foi desafiado, em uma "prova de coragem", pelo comerciante Mauro Rodolfo, proprietário do restaurante Rei do Frango – que, na época, era localizado no centro da cidade. Fizeram uma aposta. O resultado desse jogo foi o seguinte: dissimulado e um pouco sem jeito, Morô entrou no Salão Irmãos Buck, sentou em um banco e ficou a olhar para o teto, como quem não quer nada. No momento que sentiu que ninguém estava prestando atenção, retirou do bolso centenas de tampinhas de garrafa e as jogou pelo chão, causando espanto e riso em todos os presentes. Ato contínuo: fugiu correndo, às gargalhadas.

E assim, no meio do caos urbano, Morô atravessava os dias e o folclore. Caminhando pelas ruas, com uma cartela de rifa nas mãos, poderia ser encontrado nos locais mais estranhos e absurdos da cidade. Da "zona" ao Coral, passando pelo Morro do Posto, Brusque, Vila Nova, Copacabana, Aeroporto Velho, Santa Helena, calçadão – nada era limite para esse andarilho que muitas vezes foi chamado de "mendigo sofisticado".

Muitos sociólogos sem diploma fizeram a seguinte análise: essa história de vender rifa (que ninguém ganha) nada mais era que uma maneira muito particular de pedir ajuda financeira, sem precisar "pedir" de fato. Pode ser. Pode não ser. Isso nunca foi importante. Pelo menos para ele.

Lages é o lugar onde Morô empenhou suas esperanças e construiu um mundo muito particular, onde tudo é límpido e transparente, beirando a ingenuidade. Ao mesmo tempo, certo das incertezas da existência, nunca sentiu medo de continuar vivendo. Talvez seja por isso que apostava diariamente no jogo do bicho. Era a forma com que respondia uma pergunta inquietante: será que a sorte não está por aí, querendo anunciar o amanhã?   


P.S: Este perfil (publicado na capa do suplemento "Anexo", do jornal "A Noticia", em 02 de janeiro de 1997) tangencia o "new journalism", inclusive porque todas as informações sobre o protagonista foram obtidas a partir da visão de terceiros.

A presente versão, embora conserve a ideia original, sofreu diversas alterações, inclusive nos tempos verbais.

Olhando para o passado, se me defrontasse outra vez com a mesma tarefa, este texto provavelmente seria escrito de forma diferente, abordando aspectos mais humanos e menos folclóricos. Mas isso agora é impossível, inclusive porque vários dos personagens citados (João Daniel Duara, Waldir Buck) desapareceram na poeira do tempo.

Cezarino José Ramos, o Morô, faleceu aos 80 anos, em 2010, depois de seis meses de internação hospitalar.

8 comentários:

  1. Sensacional, Raul. Já havia me emocionado com o texto quando saiu n'A Notícia, e me emocionei agora. Talvez, por conhecer os personagens, não senti falta da dimensão mais humana. Ainda vou às ruas como se pudesse encontrar o Morô, o Perereca, o Capitão Lindolfo, ou como se pudesse comprar um gibi de amendoim e doce-de-leite na bodega do Seu Longino. Sinto saudades dessas peças todos os dias.

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  2. Excelente. Lembro dele. Andava pelo calçadão como quem não quer nada. Um ilustre, porque anônimo.

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  3. Só não digo que é um texto que eu gostaria de ter escrito porque jamais eu conseguiria escrever algo tão simplório e, ao mesmo tempo tão rico. eu só conseguiria a parte simplória. Somos todos uns Morôs sem a certeza de que teremos um Raul Arruda Filho para escrever sobre nós!

    Abraço meu caro
    Edson Varela

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  4. Parabéns Raul. Belo texto e muita saudade de Lages da minha infância e juventude.
    Marcio Vieira de Souza

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  5. Irretocável! E ainda trouxe notícias do Perereca, do irmão Buck, do "Seu Walter", Daniel, Dr. Jorge Barroso. Incrível. Estou realmente feliz. Abração. Bada.

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  6. Parabéns, Raul! Um belo resgate de uma personagem marcante. Morô não era apenas o simplório que transparecia, pois, quando instigado, ou, melhor dizendo, estimulado ao diálogo, revelava muita lucidez e coerência, especialmente em relação à política. Foi uma bela criatura que despertava curiosidade, admiração, risos, enfim diversas atitudes, mas, jamais, indiferença. Renove as energias e nos brinde com outros resgates. Abraços.

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