Gosto de futebol. Moderadamente. Nas tardes de domingo, uma partidinha na televisão não é mau programa. Sofá, cerveja, pipoca. Se o jogo for bom, motiva−se o destampar de algumas muitas ampolas de pão líquido. Em caso contrário, aproveita−se o sofá para colocar o sono em dia. Exigir mais do que isso sempre me pareceu inadequado. Desafortunadamente, há quem discorde. Algumas pessoas consideram que vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola têm o mesmo valor de um ritual religioso. Nesse cenário, o grito de gol equivale ao clímax, ao orgasmo. Bobagem. De minha parte, um grito de gol é apenas barulho irritante. Quando o gol é contra o Santos, muito mais irritante.
O fanatismo, que é um fenômeno trivial no mundo esportivo, costuma gerar episódios excessivos. Um conhecido, depois de assistir − pela televisão − a derrota do time de sua devoção, chamou a família para uma solenidade no quintal de casa. Enquanto um dos filhos, clarim em punho, executava (literalmente) o "toque de silêncio", ele, lágrimas escorrendo pelo rosto, hasteou a meio−pau a bandeira da agremiação esportiva.
O único momento em que considero o futebol como algo sério é nos jogos da seleção brasileira. Independente dos jogadores convocados, do técnico ou da importância do jogo, minha função nesse tipo de situação é simples: torcer contra. Não é uma posição cômoda. Certa vez, na casa de amigos, quase fui atingido por uma panela de pipocas. Era uma partida contra um país africano, não lembro qual. Fiz algum comentário sobre a incapacidade intelectual dos jogadores nacionais. A namorada de um amigo tomou as dores dos ofendidos. E... Transformou o utensílio doméstico em tacape. Se não a contivessem a tempo, provavelmente me presentearia com uns quinze pontos na cabeça.
Em ocasiões similares, o tribalismo esportivo se faz acompanhar de agressões verbais. Como a seleção é considerada símbolo nacional, torcer contra é anti−patriotismo. Esse pensamento nacionalista, herdado das ditaduras militares, habitualmente é seguido por simpáticos elogios a respeito de minha masculinidade. A honra da senhora minha mãe também costuma ser mencionada com carinho.
Fofo, muito fofo.
O aspecto sócio−político do esporte, por sua vez, ninguém quer abordar. Torcedores, atletas e jornalistas preferem a abstenção. Ou melhor, a neutralidade. Vigora o comportamento alienado de que "em boca fechada não entra mosca". Em outras palavras, as relações com o mundo objetivo estão sob o controle dos dirigentes, que as podem usar como melhor lhes for convenientes. E, claro, eles as usam politicamente, inclusive para constituir patrimônios incompatíveis com a renda salarial.
Na "pátria de chuteiras", segundo a histriônica definição de Nelson Rodrigues, muitos torcedores andam descalços. E com fome. E com frio. E com sede. Sede de justiça – aquela que todos conhecemos por tardar e falhar, sem constrangimentos, sem pedidos de desculpas. No país onde o drible, a firula, o passe de letra, o deixar o "João" da vez sem fôlego são qualidades indiscutíveis, a política esportiva incentiva a "estética da mendicância", onde todos aqueles que estão em situação de vulnerabilidade sofrem violências inimagináveis. Em lugar de oferecer alguma solução para os problemas reais, os jogos do campeonato brasileiro, nas quartas−feiras e domingos, anestesiam as dores dos outros dias da semana.
Em outras palavras, na nação futebolística a Copa do Mundo é a Disneylândia dos pobres. É o parquinho de diversões, onde a política e o futebol andam de mãos dadas, enganando os trouxas.
Futebol é política, é ação política. Como tudo na vida. Mas, para que se possa enfrentar um adversário prepotente, acostumado a vencer, precisamos reforçar a defesa, posicionar os nossos melhores jogadores no meio−de−campo. Somente quando for possível distribuir a bola para os atacantes é que haverá equilíbrio no placar. Em outras palavras, é preciso fazer uma escolha política: ou acordar para a vida ou continuar sonhando sonhos que não são os nossos. Por enquanto, seja como uma forma de protesto, seja para não ser pisado pela multidão, vou continuar torcendo contra a equipe que – dizem – representa o Brasil.
"ou acordar para a vida ou continuar sonhando sonhos que não são os nossos."
ResponderExcluirRaul, citando Morpheus (Matrix. Bem vindo ao deserto do real.
Rafael.
Rafael, essa escapou, não foi intencional. Obrigado por estabelecer a referência literária!
ResponderExcluirPois é, essa gente fanática por futebol. Como podem? Tsc. (eu rio de mim mesmo)
ResponderExcluirMaurício: Obrigado pelo comentário. A postagem estava com alguns pequenos erroa de digitação, que foram corrigidos!
ResponderExcluirFalou tudo!!! Te admiro muito professor!! Sou sua fã! Você é minha inspiração! Excelente texto!!! Parabéns! ❤
ResponderExcluirTexto perfeito! Concordo plenamente! Por isso te admiro muito! Sou sua fã professor!! ❤
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