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quinta-feira, 5 de abril de 2012

JOÃO ANTÔNIO, UM BRASILEIRO

Dizem que foi preciso arrombar a porta. Dizem que ele dormiu e não acordou mais. Dizem que ele estava deitado na cama, o corpo em decomposição. Dizem que foram causas “naturais” – como se a morte, qualquer morte, fosse causada por algo que merece ser adjetivado como “natural. Dizem muitas coisas e esquecem que a sua falta é irrecuperável.

João Antônio Ferreira Filho (1937-1996), discípulo direto de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escrevia como fosse um príncipe destronado, desses que perdem as posses e os títulos, mas conservam a pose e a honra. E fazem de seu habitat o cenário para narrar histórias viscerais, onde não há lugar para arrependimentos insípidos ou cenas de choro. Era um mestre da picardia.

João Antônio tinha a grandeza da literatura clássica, provavelmente bebeu muito na fonte cristalina aberta por Balzac e Dickens. Esbanjava um estilo inigualável, seja pela limpidez do texto e pelo uso do coloquial, seja porque parte de sua temática ficcional estava concentrada na descrição das batalhas desiguais que são travadas entre personagens das classes sociais menos privilegiadas. Ao focar malandros e otários, a arraia-miúda do submundo, não se constrangia em narrar que esses embates – muitas vezes – terminam com a derrota dos merduchos, esses sujeitos que se imaginam espertos e não o são.

Apesar das aparências pouco civilizadas desse universo em que não há lugar para santos, João Antônio nunca descreveu cenas em que alguém perde a cabeça e saca o revolver. No código de honra desses indivíduos, o prazer de aplicar um bom golpe é maior do que a destruição física do inimigo. Saber que o trouxa precisará amargar a derrota por algum tempo equivale a um gozo que não tem preço. Se, em contrapartida, houver um revés, a regra de ouro da sobrevivência segue inspiração estoica: baixar a cabeça, lamber as feridas, recuperar as forças e esperar a oportunidade de revidar. Em outras palavras, são personagens que nunca alimentam fantasias com o lado ensolarado da vida.

E como é que poderiam? Profissionais qualificados (vagabundos, gigolôs, prostitutas, traficantes, jogadores de sinuca,...) precisam batalhar diariamente para sobreviver nessa selva que muitos chamam de a noite. E isso significa, entre outras coisas, que “depenar um pato” requer prática e habilidade. É uma arte! Poucos possuem esse dom! Então, se algum “bacana” ou "babaca" der mole, não há porque perdoar.

Parte dessa filosofia está expressa no conto Malagueta, Perus e Bacanaço, que foi traduzido para mais de quinze países e possui uma versão cinematográfica (O Jogo da Vida. Dir. Maurice Capovilla, 1977). Três amigos, jogadores de sinuca, perambulam pela noite paulistana, procurando pela oportunidade para tomar dinheiro de algum incauto. Na ânsia de ganhar, em uma única noite, o sustento para um mês inteiro, perdem a noção do perigo e se deixam enganar infantilmente por um jogador mais forte: Robertinho ganhava. Classe, jogo limpo. Respeito ao parceiro, era um taco. Pouco falava, sério e firme nos seus passos pequenos, rápidos, em torno da mesa. Olhava para as bolas, para o marcador, não motivava encabulações, desacatos, perdas de atenção. Jogava para ele, não assobiava, não cantarolava, acatava Malagueta. Jogava o jogo. É cruel ver o sonho desmoronar, embora seja mais frequente do que se imagina. E o resultado? Falou-se que naquela manhã por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três cafés fiados.

Nos contos de João Antônio, encontramos um mundo onde os personagens relatam ou vivem as suas aventuras com arrogância e orgulho, disfarçando a dramaticidade da situação. Envoltos em agressivo cinismo, sonham em encobrir a verdade – ou seja, estão imersos na tristeza irreparável e na mediocridade da vida. Não é a situação mais fácil. E ninguém escapa dessas sinucas de bico, sem deixar algum rastro de dor pelo caminho.

Simultaneamente, todos tentam preservar algum tipo de ternura – seja no olhar, seja em algumas ações. Em contos como A Afinação na Arte de Chutar Tampinhas, Fujie, Leão-de-Chácara ou, no igualmente clássico, Meninão do Caixote, esse embate emocional está presente, a bater nos olhos do leitor, a lembrar que a poesia está presente em cada instante da vida.

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