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quinta-feira, 26 de abril de 2012

A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO, INCULTA E BELA (ETERNAMENTE MASSACRADA PELOS FARISEUS)

Por diversos motivos, inclusive políticos, não acredito em alma penada. Infelizmente, diante das circunstancias extremas que, neste momento, afligem a nação, não posso negar o óbvio: Policarpo Quaresma, personagem emblemático de Lima Barreto, ressuscitou! Versão fake, obviamente. E aparentemente mais raivoso e insensato do que na primeira aparição. No famoso romance, Policarpo é um nacionalista, modelo xiita, desses que preenchem as horas vagas com exaltações à geografia pátria e ao estudo do tupi−guarani. Combatendo incansavelmente o mundo externo, ele quer reduzir a vida brasileira a uma redoma de cristal − onde a felicidade sufocará quaisquer elementos que possam parecer estranhos ou exógenos.

Como a História é cíclica, não é possível impedir o ressurgimento do Dr. Frankenstein – sempre disposto a gerar novos monstros. O debate cultural brasileiro está repleto de exemplos (ruins) dessa insensatez. Não bastasse o projeto esquizofrênico de um Deputado Federal, que queria impedir a contaminação do idioma português pela língua inglesa, ignorando que o português é um organismo vivo, em constante mutação, também fomos atacados pela banda podre dos caçadores de erros lingüísticos. Uma cartilha oferecida pelo Ministério da Educação foi bombardeada pela malta mais refratária à inteligência porque, absurdo dos absurdos, ousou propor o coloquialismo como ponte para a aquisição do conhecimento. Indivíduos inequivocamente ignorantes nas questões vernaculares se insurgiram contra essa libertinagem. Ora, ora, onde é que já se viu tamanha barbaridade!, disseram a mancheias os hipócritas. Tanto incomodaram que foi preciso recolher parte do material. Recentemente, a quadrilha dos politicamente corretos tentou transformar Monteiro Lobato em racista – uma bobagem tão insensata que sequer merece ser comentada.

A última novidade nesse mar de genialidade foi produzida em Minas Gerais. Um Deputado, engenheiro civil, protocolou na Assembleia estadual projeto proibindo a distribuição, na rede pública e privada, de publicações didáticas, paradidáticas e literárias com conteúdo contrário à "norma culta" ou que viole o "ensino correto" (???) da gramática do idioma nacional. O projeto também quer impedir a veiculação de conteúdos que apresentem conteúdo sexual, com descrições de atos obscenos, eróticos, e referências a incestos. Apologias e incentivos diretos ou indiretos à prática de atos criminosos também estão vetados.

Ao longo da história humana, os fariseus sempre tiveram a pretensão de ser mais realistas do que o rei.

A norma culta é apenas um parâmetro de inteligibilidade, não é uma regra de conduta social. Ninguém é mais inteligente ou preparado para a vida se não dominar a gramática ou a ortografia. No entanto, vigora uma proposta ideológica de que o desenvolvimento intelectual precisa estar conectado com o domínio pleno das regrinhas chatas - aquelas que determinam as diferenças entre “certo” e “errado” (como se isso, certo e errado existisse!). Esse pensamento reacionário está ligado com outra questão: a divisão clássica entre pobres e ricos, entre dominantes e dominados. Aqueles que estudam, sabem ler e escrever, determinam lugares no mundo - de  onde escravizam os outros. E esquecem que nem mesmo os estudiosos da gramática conseguem dominar a amplitude do conhecimento, pois, como acontece frequentemente, raras são as vezes que se mostram preparados para resolver questões práticas. E a prática é simples: comunicação é prioridade. Entre escrever pela norma culta e saber se expressar adequadamente, a segunda opção precisa prevalecer! Outra coisa, no entanto correlata, o nível de comunicação média entre profisionais "normais" é mediano (inclusive entre professores de diversas disciplinas escolares). Mas, isso não importa, porque sempre tem um sujeito ambicioso tentando mentir que sabe ler e escrever melhor do que os outros.

Não bastasse essa falácia, tem uma maior. Condicionar a literatura à tirania da norma culta é retroceder às trevas da Idade Média e do ridículo. Segundo esse obscuro deputado, nada mais resta senão condenar João Guimarães Rosa à enxovia, pão e água até que aprenda a escrever Ivo viu a uva. Ou alguma outra bobagem similar.

Por último, essa patuscada de conteúdo sexual ou erótico é outra piada sem graça. Parece até coisa de religioso (desses que preferem caçar bruxas em lugar de olhar para o próprio rabo). Por esse critério non-sense, os mineiros deverâo, a partir da promulgação do projeto, ignorar as obras de escritores como Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Luiz Vilela, Ivan Ângelo, Guiomar de Grammont, entre tantos outros.

Ou seja, Minas não há mais. Ou menos. Foi reduzida a uma mina, onde esconderam talentos, onde cercearam a liberdade criativa, onde escrever precisa de autorização dos censores.

A Alemanha nazista ficou célebre por diversos motivos. Um deles: censurar livros (que depois foram queimados em praça pública, como que a expurgar os pecados de quem não rezava pela cartilha oficial).


P.S.: Um trecho do poema No Caminho, com Maiakovski, do mineiro Eduardo Alves da Costa, merece ser lembrado sempre:

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

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