O rosto nos identifica, diz o cirurgião plástico Robert Ledgard (interpretado por Antonio Bandeiras), no início do filme La Piel que Habito (Dir. Pedro Almodóvar, 2011). Não é verdade, como ele mesmo admite algum tempo depois. O que caracteriza exteriormente um homem ou uma mulher é o corpo. Poucas situações são mais angustiantes do que viver dentro de um corpo que não corresponde à projeção mental que o indivíduo faz de si mesmo. A figura da travesti, corpo em mutação, expõe esse descompasso.
Baseado no romance Mygale (Tarântula), de Thierry Jonquet, La Piel que Habito é, para dizer o mínimo, um filme desagradável. Com o passar do tempo e a multiplicação dos títulos que integram a sua filmografia, Almodóvar perdeu o senso de humor. Seus últimos filmes se caracterizam pela seriedade, pela melancolia, pela necessidade agressiva de causar desconforto no espectador. Parece outro. Definitivamente, não é mais aquele que dirigiu Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) e Tacones Lejanos (1991). Será isso ruim? Difícil dizer, mas muitos fãs detestam essa fase negra de Almodóvar.
La Piel que Habito conta uma história trágica, onde o voyeurismo e a insensatez se misturam em uma argamassa de horror. Robert perdeu a esposa depois de um acidente automobilístico – ela estava fugindo com o amante (Zeca, irmão de Robert). A filha do casal sofreu uma tentativa de estupro durante uma festa. Seguindo a trilha das disfunções emocionais, a menina enlouquece. Mais tarde, suicida−se.
O que não pode conseguir o amor de um louco?, pergunta Marília, a dublê de empregada e mãe de Robert e Zeca. A resposta não é fácil, embora o filme tenha a pretensão de demonstrar − de maneira pouco ortodoxa − o que pode ocorrer no encontro entre o ódio sem limites e um homem sem compromisso ético, que deseja vingar a filha e recuperar o afeto da mulher que o abandonou.
Para que isso aconteça, Robert (que de certa forma lembra o personagem interpretado por Bandeiras em Atame!, de 1989) elabora um plano macabro − espécie de releitura a−pós−o−moderno dos mitos de Frankenstein (Mary Shelley) e Pigmaleão (George Bernard Shaw). Ou seja, criar um indivíduo, através de um corpo novo, e, seguindo a lei natural desse tipo de evento, permitir que a criatura domine o criador.
Vicente Guillén Piñero, o estuprador, é sequestrado. Depois de ser submetido a vários graus de tortura psíquica, é conduzido para o centro cirúrgico existente na mansão do médico, onde Robert realiza uma vaginoplastia no prisioneiro. Depois da troca de sexo, inúmeras outras cirurgias plásticas. Aos poucos, o corpo masculino vai perdendo suas características - e o corpo da mulher vai sendo modelado. Vicente se transforma em Vera Cruz, uma espécie de ressurreição da esposa morta de Robert.
A cruz que Vera (ou Vicente) precisa carregar está metamorfoseada em três prisões. Primeiro, a sensação desagradável de estar dentro de um corpo que não é o seu. Depois, o quarto onde vive. Trancado a chave, esse cárcere com algum conforto, estabelece os limites entre o permitido e o restrito. Para não enlouquecer, enquanto Robert inscreveu em seu corpo um relato de ódio, Vera, a prisioneira, escreve nas paredes do quarto um auto de resistência. São as palavras grafitadas na divisa entre os cômodos da mansão que estabelecem a sanidade.
A terceira masmorra reflete o que a criminologia denomina Síndrome de Estocolmo. Ou seja, a possibilidade da vítima (principalmente nos casos de seqüestro) se envolver emocionalmente com o seu carrasco. Essa transmutação afetiva resulta em dependência amorosa. O agressor se torna amante, o agredido se torna cúmplice. E a diferença entre uma coisa e outra esvaece na confusão mental.
Seja um ardil, seja efeito da sujeição aos caprichos do torturador, Vera passa a agir como mulher. Uma mulher apaixonada por Robert.
Essa máscara desaparece quando um jornal publica fotos de várias pessoas desaparecidas. Ao ver o rosto modificado pela correção estética, Vera/Vicente recupera a noção ética, embora o corpo marcado pela transformação física não possa mais ser corrigido – como se pode ver no desespero relatado na cena final.
ESSE FILME É MUITO BOM.DISCUTE QUE NEM SEMPRE A APARÊNCIA CORRESPONDE A ESSÊNCIA.
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