Michael Haneke é um moralista radical. Ou seja, diante do mundo contemporâneo, é um provocador, um desses caras que adoram caminhar na contramão. E sem medo de ser atropelado. Ao contrário, quer atropelar. Alguns críticos o consideram um mestre do cinema da crueldade. Quem assistiu Violência gratuita (1997, refilmado em 2008), A professora de Piano (2001, baseado em romance de Elfriede Jelinek) e Caché (2005) provavelmente concorda com essa classificação. Inclusive porque o filme mais recente do diretor austríaco, A fita branca (Das weiße Band), vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2009, não desmente a tese.
Filmado em preto−e−branco, recurso estético que estabelece proposital distanciamento temporal e afetivo com o espectador, A fita branca trata de alguns eventos pouco usuais em uma aldeia alemã alguns meses antes do início da Primeira Guerra Mundial. Os acontecimentos externos (o acidente com o medico, o incêndio no celeiro, as duas crianças torturadas) e os episódios intramuros acrescentam substância à narrativa. É no ambiente familiar (onde a coerção e a religião se aliam com a sevícia) que o ovo da serpente inicia a eclosão.
Na cena inicial, a narração em off alerta que "depois de tantos anos ainda restam alguns mistérios e inumeráveis perguntas continuam sem resposta". Em outras palavras, o filme está preocupado em contar a história, mas não em terminá-la. O final "aberto", desses que deixam as conclusões para o espectador, estabelece o distanciamento. "Eis os fatos, faça com eles o que quiser", diz Haneke, abusando do método socrático de ensino. Principalmente porque não é difícil encontrar a resposta que ele não procurou esconder.
Para ajudar, ou atrapalhar, a fotografia do filme explora a profundidade de campo de maneira exemplar: as plantações de trigo engolindo o espaço e refletindo a luz. Em sintonia, os planos lentos − muitas vezes através de câmera parada (os personagens entrando e saindo do "frame"). O andamento não se afasta da linearidade, a voz do narrador conduzindo a sequência narrativa, acrescentando elementos, marcando os avanços temporais.
Enquanto quase todos os homens adultos (a exceção é o professor) são violentos, repressores e maníacos sexuais, as mulheres são submissas, carentes e dependentes da autoridade masculina. Mesmo a Baronesa, quando confessa interesse em outro homem, não consegue romper com a estrutura repressiva. É um mundo ordenado por regras punitivas e disciplinadoras. E que se estende aos filhos através da violência física. Os filhos do pastor, quando transgridem o ordenamento doméstico, são obrigados a usar a fita branca (metáfora da estrela de Davi − usada pelos judeus durante o Terceiro Reich). O branco é a cor da inocência e ajuda "a evitar o pecado, o egoísmo, a inveja, a indecência, a mentira e a preguiça", como discursa o pai das crianças.
Esse homem voltado aos “valores superiores”, e que desempenha um papel fundamental no ordenamento social da vila, esquece de mencionar que o mundo adulto é hipócrita. E que as qualidades que exige nos filhos raramente são obedecidas pelos adultos. Omite que sente prazer em bater nos filhos. Não entende como agressão o amarrar as mãos do filho adolescente na cama para impedir que o menino se masturbe. Nada observa sobre a maneira com que o Barão explora os empregados. Finge desconhecer que o médico é o pai do filho deficiente da empregada – além de, nas horas vagas, molestar a filha.
Entre o mundo das aparências (habitado pelas crianças) e o mundo real (dominado pelos adultos), as vítimas se transformam em algozes. É isso que o professor desconfia quando vai falar com o pastor, ao final do filme. Ao revelar as suas suspeitas, não o faz por ter certeza de que os crimes foram cometidos pelas crianças, mas sim por não acreditar que sejam obras dos adultos. Envolto no idealismo fácil de que os adultos sabem distinguir entre o certo e o errado, prefere apostar no óbvio.
Independente de quem praticou a ignomínia − e as cenas finais não ajudam no esclarecimento do enigma −, o filme alerta para uma verdade atemporal: os bárbaros estão prestes a arrombar as portas da civilização.
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