Páginas

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

HERÓIS DEMAIS, UM ROMANCE DE LAURA RESTREPO

Parte da história latino−americana pode ser resumida no parágrafo final do conto A herança de Matilde Arcángel, de Juan Rulfo:

Quando parecia que já tinha terminado o desfile de figuras escuras que mal se distinguiam na noite, começou−se a ouvir, primeiro mal e depois mais clara, a musica de uma flauta. E dentro de poucos momentos, vi chegar meu afilhado Euremio montado no cavalo do compadre Euremio Cedillo. Vinha na garupa, com a mão esquerda pegando firme na flauta, enquanto a direita sustinha, atravessado na sela, o corpo de seu pai morto.

A força da metáfora (o filho carregando o corpo do pai) remete ao período colonial, quando, abusando da autoridade paterna, Portugal e Espanha reprimiram quaisquer desobediências de seus filhos bastardos d’além−mar. Saqueando as riquezas do novo continente, impingindo a religião católica aos nativos, instituindo um regime autoritário de governo, também gestaram o ressentimento, o rancor e o afastamento. As lutas de independência caracterizam o momento em que o filho rompe com o pai. No entanto, toda ação traumática exige uma reconciliação traumática. Morto o pai arquétipo urge encontrar quem o substitua. O desejo caminha na direção do refazer o percurso, corrigir as injustiças, estabelecer um patamar igualitário. Há quem diga que essa tarefa é utópica, que não há mais como restaurar os cristais quebrados.

Heróis demais, oitavo romance de Laura Restrepo, caminha na direção oposta. Otimista, misturando a história política latino−americana com humor de fina sensibilidade, a narrativa vai avançando no trabalho de autópsia do corpo em decomposição. A união da colombiana Lorenza com o argentino Ramón Iribarren vai sendo recuperada lentamente, entremeada por histórias de militância política, ilusões amorosas e amadurecimento intelectual. O elemento catalisador dessas lembranças é o filho, Mateo, 16 anos. O rapaz quer conhecer o pai. Ou melhor, reconhecer o pai. A distância física e afetiva criou um vazio e o filho quer saber a extensão do buraco. E enquanto esse personagem não entra em cena, Mateo e Lolé (que é a forma intima com que o filho denomina a mãe) vão passear, de mãos dadas, pelo passado.

Lorenza o esteve observando todos esses dias; seu filho se preparava para o encontro com o pai como para uma cerimônia. Ou um duelo.

Como convém a um bom suspense cabe esperar pela última cena para ver se o bandido é punido. Talvez não exista bandido. Ou herói. Na história de alguém ansioso por estabelecer suas origens, talvez, desta vez, não seja necessário ver o filho carregar o corpo morto do pai.

− Te liguei por isso, Lolé. Quem sabe é melhor você ir sozinha pra Bogotá, que acha?
− Hein? O que está dizendo?
−Eu fico com Ramón. Já está tudo acertado.
− Como?
−A boina basca é pra você. Te dou ela.
− Espere aí, Mateo. Isso é sério? Como assim, ficar com Ramón? Você não pode tomar uma decisão dessas sozinho, já sabe que eu...
− Duas ou três semanas apenas, até que acabem minhas férias do colégio.
− Mas, Mateo...
− Não se preocupe, eu não tenho dois anos e meio. Se eu cheiro uma ramonada, dou o fora e esse Ramón não me alcança nem nas curvas. Total, tenho a metade do peso dele e sou uma cabeça mais alto. Confie em mim, Lorenza. Vou ver quem é esse homem e volto quando souber.



A metáfora do conflito entre o pai e os filhos se repete na história da literatura colombiana. Depois que Gabriel Garcia Márquez ganhou o Prêmio Nobel, escrever se tornou difícil. A sombra do gigante determinou a escuridão. Mesmo assim, inclusive para estabelecer outros parâmetros, alguns novos talentos estão tentando usufruir um pouco do sol. Ao lado da prosa límpida de Álvaro Mutis (nascido em 1923), diversos romances colombianos foram publicados (sem muito sucesso) no Brasil: Impávido Colosso (Daniel Samper Pizano, 2006), Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin e Era uma vez o amor mas tive que matá−lo (Efraim Medina Reyes, 2004 e 2006), A síndrome de Ulisses (Santiago Gamboa, 2006), A virgem dos sicários e O despenhadeiro (Fernando Vallejo, 2006 e 2008), entre outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário