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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE UM ROMANCE DE ISMAIL KADARÉ


A história da Albânia é rica e confusa. O país foi invadido centenas de vezes. Os inimigos se instalaram na vasta geografia de seus vales e planícies. Dos homens fizeram escravos. Das mulheres e crianças se apossaram. Depois, como todos os outros invasores, foram expulsos. Os albaneses nasceram para ser livres. Nem mesmo o ar pretensioso do rei Zog I, o último representante de uma monarquia cambaleante, conseguiu controlar os súditos. O único que conseguiu moderar esse temperamento libertário foi Enver Hoxcha: os fuzis dos soldados, sob as ordens do ditador comunista, calaram qualquer resistência.

Esporadicamente, a Albânia contribui com os noticiários. Além das inúmeras disputas políticas internas, de alguns litígios não−resolvidos com Israel, ainda há a xenofobia italiana. Esse último problema não é novidade. A costa italiana tem sido, ao longo da história albanesa, uma projeção do paraíso. Quem sonha em fugir do horror instituído pelo comunismo se aventura no mar. No filme La nave va (Dir. Federico Fellini, 1983), além do rinoceronte, há o anacronismo de um bando de albaneses à deriva no Adriático.

Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, muitos albaneses imigraram. O Brasil, de norte a sul, recebeu alguns deles – quase todos se tornaram comerciantes. Os países europeus também receberam a sua cota. O escritor Ismail Kadaré se exilou na França, em outubro de 1990.

Sujeito singular esse tal de Ismail Kadaré. Integra, nos últimos quinze anos, as listas (mais otimistas) dos candidatos ao Prêmio Nobel. Entre os seus inúmeros livros há um ensaio sobre Ésquilo, o celebre dramaturgo grego. Também escreveu poesia. Mas, quem consegue explicar os desatinos literários?, ficou famoso pelos romances. Quer dizer, "famoso" em termos. O grande público brasileiro desconhece olimpicamente os livros que escreveu.

O mais famoso deles, Abril despedaçado, quase foi destruído pela adaptação cinematográfica feita pelo diretor brasileiro Walter Salles, em 2001. A história que margeia o código de honra albanês resultou em um filme de gosto travado, característico do delírio de quem acredita que a poesia pode superar a linguagem. O filme não é ruim, mas o romance avança em outra sintonia e foi isso que Walter Salles não conseguiu entender.

Abril despedaçado é um desses romances que conseguem superar as particularidades regionalistas de um país quase bárbaro. Na região de rrafsh (assim mesmo, com dois "erres"), entre o Kossovo e a Albânia, vigora um rígido estatuto tribal. É o Kanun. Essa espécie de lei não escrita determina as normas de honra para o comportamento de duas famílias inimigas. Por alguma razão distante da memória, em tempo imemorial, houve uma morte. A partir desse dia, matar todos os membros do clã inimigo se tornou o objetivo da existência da outra família. Um sistema de assassinatos consentidos.

O romance inicia quando Gjorg Berisha dispara contra Zef Kryeqyqe – a quadragésima quarta morte dessa luta fratricida. Cabe decidir entre os membros da família do morto aquele que vai vingá−lo. Em seguida, será a vez de alguém da outra família resgatar a dívida de sangue. E esse círculo vicioso se repetirá, infinitamente, até o último homem das duas famílias.

Paradoxalmente, depois de cada morte, há uma liturgia. Quase uma comemoração. Várias ações são deflagradas. Todas minuciosas: o anúncio da morte, a posição do cadáver, o velório, o banquete fúnebre, o sepultamento, os prazos, tréguas e tabus da vingança, o pagamento do "imposto de sangue" (para cada morte, o Estado recolhe uma taxa), a humilhação que sofre a família enquanto não "recuperar o sangue", a obrigação de refazer o percurso da morte.

Paralelo a essas informações, uma carruagem atravessa a geografia e o texto. Um casal está se dirigindo para a Kulla (uma espécie de castelo) do príncipe de Orosh. Vão se casar.

Um problema: a noiva não está muito feliz. Suas dúvidas a respeito do casamento são grandes. Em uma estalagem, na beira da estrada, troca olhares com Gjorg – após ter quitado o "imposto de sangue", ele está voltando para casa. No rosto pálido do rapaz, Diana, a noiva, encontra uma série de perplexidades. Fica impressionada. Provavelmente, apaixonada. É um amor platônico, com requintes de masoquismo.

Nessa perversa metáfora de duas pessoas prestes a morrer (Gjorg será vítima do Kanun; Diana, do casamento), um vínculo sem densidade se estabelece entre eles. Uma espécie de paixão. Apesar disso, cada um deles segue o seu caminho, o seu destino.

Em dado momento, há uma tentativa de fornecer algum sentido para esse non−sense. Tudo em vão. É tarde demais. "Abril é mais cruel de todos os meses" (April is the cruellest month). No momento em que a bessa (a trégua) se esgota um tiro de fuzil corta o ar, lâmina implacável a destruir todos os sonhos.

4 comentários:

  1. Por hoje é só um abraço atrasado...volto.

    BRILHE!

    Você sonha - logo, existe.
    Você ouve, vê, sente, pensa - logo, acredita.
    Acreditar é a palavra.
    Você é. Você está. Você pode. Você faz.
    Você melhora. Você dá. Você recebe. Você acrescenta. Você faz a diferença.
    Você vai fazer deste um dia especial.
    Não se intimide diante de nada.
    Sua força está renovada.
    O tempo está a seu favor. O dia só está começando.
    Concentre-se nos seus objetivos e não perca a chance de tomar sempre a
    melhor atitude.
    Está em cena aquela pessoa bonita, forte, inteligente, charmosa, generosa
    e humilde que está aí dentro você.
    Deixe evidente suas qualidades.
    Não tenha vergonha de fazer bonito.
    Gente é pra brilhar.
    Aproveite, o cenário já está pronto.
    É só deixar o seu talento fluir.

    Autor Anônimo

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  2. Olá,

    Acho interessante entender Abril despedaçado - filme independentemente de Abril despedaçado - livro. Acho fantástica a obra de Kadaré, mas em nenhum momento Salles tentou reproduzi-la fielmente. É um erro comparar uma obra literária com uma obra cinemaográfica: ambas são artes diferentes, com suas peculiaridades.

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    1. Elis: o cinema nunca (felizmente, nunca!) vai conseguir se equiparar com a literatura que adapta. No entanto, transportar um tema localizado em determinado cenário para outro cenário implica em manter (no mínimo) a coerência. Foi isso que não encontrei no filme de Walter Salles (que também fracassou com a adaptação de "On The Road"). Kadaré merecia melhor sorte! Beijos e abraços!

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