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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

VOZES DA SOLIDÃO, VOZES DA ILUSÃO


Uma das matérias-primas da literatura é a dor. Ou melhor, a manipulação sofisticada do sofrimento. E o uso das palavras manipulação e sofisticada na mesma frase não é acidente ou descuido. Seguindo o conselho clássico de André Gide, não se faz literatura com boas intenções, em alguns momentos (ficcionais ou não) há a necessidade de inventar incômodos, inquietações e suplícios. Mesmo nos casos em que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, como cantou Caetano Veloso, parte da tarefa literária consiste em transitar por patamares resultantes de situações limítrofes. Essa é uma das muitas formas com que o ser humano contorna a repressão emocional e transforma o tédio e a mediocridade em aventura épica.

Histórias felizes raramente resultam em literatura de boa qualidade. Por outro lado, finais felizes são aceitáveis (de vez em quando). Como sabe qualquer aprendiz de filósofo, a infelicidade está rodeada pela esperança: mesmo que o refresco não dure mais do que um abrir e fechar de olhos, é com esse cobertor que se atravessa o inverno/inferno formado pelo medo.

O romance Sinuca embaixo d’água, de Carol Bensimon, descreve as nuanças de um desses momentos cruciais: a impossibilidade de superar o luto. Apegados a um contexto que foi subtraído pela morte, todos os personagens da narrativa alimentam visões deformadas de um passado insepulto. Como se estivesse cultivando jardim, para poder brincar de esconde-esconde entre as muitas adversidades do existir, o romance coloca em destaque a precariedade da vida, o mundo em ruínas, lugar onde todos se sentem desprotegidos. E isso resulta em um texto emocionalmente ambíguo, incapaz de atrair simpatia do leitor: ao enfatizar o significado da perda, Sinuca embaixo d’água potencializa a inutilidade de procurar por algum alívio.

Carol Bensimon (que havia publicado, em 2008, um livro de contos muito acima da média nacional, Pó de parede) provavelmente se sentiu desconfortável para contar uma história longa, dessas que precisam ter começo, meio e fim (não necessariamente nessa ordem). Seja como fuga, seja como esforço criativo, escolheu um formato pouco ortodoxo de estrutura narrativa para o seu primeiro romance. Com a ajuda de sete narradores diferentes (Bernardo, Camilo, Polaco, Helena, Gustavo, Lucas e Santiago), que se alternam nas chamadas dos capítulos, alguns aparecendo um pouco mais do que outros, a narrativa reconstrói o entorno de Antônia e o acidente automobilístico que a vitimou. O romance é construído por depoimentos em primeira pessoa, muitas vezes na forma de monólogo interior. Desta forma, o empilhamento de detalhes pessoais dos personagens/narradores não ajuda no desenvolvimento do tema. Muito pelo contrário, o tom adotado por todos os personagens/narradores é sombrio, pesado, cheio de autocomiseração, como se a própria dor anulasse o sofrimento. O que deveria ser intensidade, em alguns momentos é apenas deprimente.

Além disso, o fluxo contínuo de lembranças, tentativa pífia de fornecer alguma explicação para a insensatez da morte, se assemelha a uma redoma de vidro, construída para separar mundos ou histórias. O envenenamento progressivo da mente faz com que cada um dos personagens/narradores centralize a sua visão no mundo alienado da perda. Solitários, sem nenhuma disposição para a solidariedade ou para a ternura, concluem que não há possibilidades de redenção e que a dor é um sentimento intransferível. Sintomaticamente, os personagens/narradores raramente conversam entre si. Como se estivessem jogando sinuca contra o destino, os personagens/narradores matam as bolas em caçapas inexistentes.

Evocando posturas filosóficas antagônicas, o existencialismo (diluído em doses maciças de niilismo) e o sadomasoquismo, Sinuca debaixo d’água não consegue obter empatia: é difícil gostar da dor em excesso. Entre o flagelo masoquista das recordações e o olhar desesperançado dos personagens/narradores, o leitor precisa sobreviver a uma narrativa desconectada com qualquer coisa que não seja o sofrimento.

No plano teórico, o romance de Carol Bensimon contém um problema significativo: embora o livro esteja divido em capítulos, onde personagens/narradores diferentes apresentam ou complementam o enredo, quase todos eles possuem formação intelectual da classe burguesa, discutem a razão afetiva com argumentos similares e, salvo em questões muito pontuais, são todos a mesma pessoa. Falta diversidade entre os personagens, falta uma marca que os diferencie. Todos os personagens/narradores cospem frases elaboradas (inclusive Lucas, que é um menino de menos de dez anos: Todos os pais adoram praticar o famoso toque de recolher, e óbvio que são eles que controlam a hora e os filhos nunca ganham relógio de pulso no Natal, o que me faz pensar que os pais trapaceiam o ano inteiro), pequenas jóias espalhadas pelo texto como se fossem banalidades que fornecem um novo colorido ao real, esse mesmo que a narrativa persegue, imaginando-o fotográfico, verossímil, mas que não se completa, porque não é a peça que está faltando no quebra-cabeça narrativo.

Mas não é apenas a questão da verossimilhança que está em discussão. Sinuca debaixo d’água é incapaz de resolver uma das questões elementares da Teoria da Literatura: a posição do narrador. Para o leitor que não se deixa manipular pela pirotecnia técnica, a estrutura escolhida não passa de puro artifício/artificialismo de carpintaria literária. A escolha de vários narradores para o andamento textual, em lugar de apresentar um posicionamento oblíquo para o enredo, mascara a existência de um super-narrador, escondido por trás das diversas vozes (os personagens/narradores), e que, semelhante a um deus onipresente, onipotente e onisciente, manipula a vazão do fluxo de informações.


Como o livro foi financiado pela Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Literária, a necessidade de cumprir prazos talvez não tenha contribuído para um acabamento mais preciso/precioso. Se a escritora tivesse deixado o romance dormir na gaveta por uns seis meses (no mínimo), provavelmente o texto ganharia uma boa revisão, e isso resultaria em substancial diferença – para melhor! Da forma com que foi publicado, o que deveria ser um romance polifônico se transformou em algarávia romanceada.

De qualquer maneira, voz literária com timbre diferenciado, Carol Bensimon encanta. E promete. Ao lado de Ana Paula Maia, Paloma Vidal, Beatriz Bracher, Tatiana Salem Levy, sem esquecer Zulmira Ribeiro Tavares, Elvira Vigna (que é ótima, apesar de quase desconhecida!), Ana Miranda, Nélida Piñon, e outras, participa da revolução que está ocorrendo na literatura brasileira. Aguardar – com ansiedade – por novos livros, por novas surpresas, não será tempo perdido.

2 comentários:

  1. Demasiada DOR para um domingo à noite Raul. Lerei o resto na segunda-feira. Boa noite.

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  2. Rafael: o grande desafio da vida é sobreviver aos finais de semana!

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