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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

PLÍNIO MARCOS, O ÚLTIMO INTELECTUAL MALDITO


Sem palavrão não há solução. A frase é de Leila Diniz, mas poderia ter sido pronunciada por Plínio Marcos. Poderia – não pode mais. Plínio Marcos, o dramaturgo que melhor entendeu a alma proletária do Brasil, tinha 64 anos quando morreu, em 1999.

Há algo de estranho na pátria amada, idolatrada salve salve: a morte costuma diminuir seus personagens mais interessantes. Os noticiários, precisando atender aos eventos corriqueiros do dia−a−dia, reduzem tudo ao patamar do rés−de−chão (o espaço geográfico onde a reflexão é apenas um verbete no dicionário). Assim, quando acontece algo significativo, a tendência é passar batido, como se fora um nada (exceção, é claro, aos eventos produzidos, editados e falsificados pela matriz globalizada da cultura).

No caso da morte de Plínio Marcos, essa constatação foi flagrante. Tivesse nascido em solo mais culto, figuraria na pauta dos cadernos culturais − que dedicar−lhe−iam, todos os anos, tonéis de tinta, análise e lamento. Como nasceu, viveu e morreu nesse solo esplêndido que alimenta seus filhos com desprezo, amargor e bordoadas da polícia, houve quem suspirasse de alívio quando soube que o desbocado havia partido desta para uma melhor.

Essa tese encontra a sua comprovação com o caso de Paul Bowles. O estadunidense morreu um dia antes de Plínio Marcos. Os jornais mais importantes do Brasil deram destaque, manchetes e páginas inteiras – lembrando, inclusive, que um de seus livros foi filmado por Bernardo Bertolucci. No dia seguinte, de volta ao tédio pátrio, somente alguns destacaram a morte do dramaturgo brasileiro. Esse tipo de bobagem, dessas que nada provam e, ao mesmo tempo, provam toda a futilidade do mundo, caracteriza um tipo muito freqüente de ação cultural em Pindorama.

Entre os lugares−comuns que iluminam a história do teatro brasileiro, um é imbatível: durante uns 20 anos (décadas de 70 e 80 do século passado) quase todos os grupos de teatro amador montaram (ou planejaram montar) uma das peças escritas por Plínio Marcos. Passar em branco por essa experiência era o equivalente à incompetência.

E essa brincadeira, que misturava qualidade e resistência, não se dava no terreno da superação das dificuldades técnicas ou presença/ausência de talento. O buraco era mais embaixo: a área perigosa e escorregadia da política. Aquele teatro agressivo, que muitos afirmavam ser escrito por um sub−Brecht tupiniquim, habitualmente só servia para afastar o público das salas onde era exibido. No entanto, talvez por teimosia, os espetáculos continuavam acontecendo – e com uma freqüência enervante. O valor da denuncia social superava, naqueles tempos heróicos (em que lutar com palavras era mais do que uma luta vã), a estética duvidosa que, nos dias de hoje, não mede esforços para agradar.

Navalha na carne, Quando as maquinas param, Dois perdidos numa noite suja, Barrela (provavelmente um dos textos mais agressivos da dramaturgia brasileira), Abajur Lilás, Querô, além de mais duas dezenas de outras peças, são alguns dos ícones de um teatro comprometido fundamentalmente com o ser humano. E o que isso significa? Simples: em um país cheio de contrastes e excluídos sociais, omitir que algumas coisas não estão indo bem significa negar os direitos que regem a vida.

Plínio Marcos, como todo bom intelectual forjado na luta contra a ditadura militar, acreditava que somente através da denúncia ostensiva, brutal, muitas vezes desagradável, é que se conseguia deslocar o olhar do público – a idéia era se afastar das futilidades e encontrar o que é realmente importante. E nada é mais importante que o exercício da cidadania – valor que precisa ser defendido diariamente, inclusive para que aqueles que dormem com o poder tenham um mínimo de preocupação e insônia.

Os personagens criados por Plínio Marcos sempre estiveram na beira do precipício, entre a queda e a vertigem: prostitutas, bandidos, todos os tipos de marginais, o lado escuro da lua, onde tudo acontece. Definitivamente, a estética que ele defendia estava muito distante de qualquer visão do paraíso. Pelo menos do paraíso burguês, aquele que adota o manual hollywoodiano de felicidade (mil confusões e eletrizante happy end).

Plínio Marcos tinha estilo. Ah, isso ele tinha! Não é qualquer um que consegue enfileirar dezenas de palavrões sem parecer grotesco. Ou artificial. O grande desafio que a literatura enfrenta nos dias de hoje não é o exercício da linguagem de um, digamos, James Joyce − coisa que qualquer pseudo−intelectualzinho de província consegue realizar sem muito esforço. A prova dos nove é transcrever a linguagem coloquial, é mostrar a vida como ela é.

Na hora em que o leitor (escritor, jogador) precisa bater o pênalti (ou um escanteio, como preferia Nelson Rodrigues), Plínio Marcos tinha consciência de que muitos são os chamados e poucos os escolhidos. Quem duvidar que leia alguns dos artigos que ele publicou na revista Caros amigos, onde tinha uma coluna muito divertida. Entre pequenos "causos" e algumas espinafrações mal−comportadas, a poesia era uma constante. Escrevendo sobre futebol, viagra (há uma crônica genial, dessas que nos faz rolar no chão de tanto rir), os amigos, pequenas histórias teatrais e outras banalidades do cotidiano, esbanjava alegria. Claro, a vida é uma festa.

Nestes tempos neobobos e insípidos, a morte de Plínio Marcos parece acenar que o início do milênio também marca o fim da inteligência. Sentiremos saudades.


2 comentários:

  1. Felizmente temos Raul, mantendo acesa a luz difusa do abajur lilás. Ótimo texto.

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  2. Rafael: Depois de Plinio Marcos, o Brasil ficou - mais uma vez - perdido em uma noite suja!

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