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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ENTRE A INFÂMIA E A INTERNET

Para quem acredita que a internet é a salvação do mundo, uma notícia simpática: não o é. Muito pelo contrario. Entre os inúmeros problemas (dificuldades de acesso, ausência de confiabilidade, carência de profundidade nas informações, terrorismo virtual, etc.), é necessário acrescentar mais uma: fofoca. Yes, em português castiço: gossip.

Espalhar informações (falsas) sobre a vida alheia não depende dos avanços tecnológicos ou da ajuda dos computadores para sua divulgação. Qualquer conversa de rua resolve o assunto. A novidade é que, unindo o ficcional e a imaginação, a internet tem contribuído para colocar na "rede" uma série de textos apócrifos. Isto é, que não são autênticos. Além disso, conseqüência de algum mecanismo psíquico torto, esses textos são atribuídos a autores que não os escreveram.

Um caso clássico ocorreu com Jorge Luis Borges. Em determinado momento, atribuíram−lhe a autoria de um texto piegas chamado Instantes (vide abaixo). A situação se tornou tão constrangedora que Maria Kodama (viúva de Borges) precisou acionar a Suprema Corte da Argentina para que ficasse claro que aquilo não tinha sido escrito por Borges. Essa intervenção judicial tinha dois objetivos: recusar dinheiro advindo de direitos autorais e evitar que os herdeiros de Borges fossem processados pelo verdadeiro autor de Instantes.

O que poucos sabem é que o poema tem origens nebulosas. Por exemplo, foi publicado, em inglês, em uma antologia de textos sobre a terceira idade (Papier Mache, Bantam Books, 1993), com o título If I had my life to live over (Se eu ainda tivesse minha vida para viver). A sua autora, Nadine Stair, óbvio, ninguém nunca viu ou ouviu falar. O jornalista brasileiro Wladir Dupont encontrou no jornal mexicano La Reforma uma referencia de autoria mais remota: o poema teria sido publicado, pela primeira vez, em 1953, na revista Seleções de Readers Digest e o seu autor seria o chargista americano Don Herold.

Como escreveu o jornalista José Nêumanne, "Seja ou não de Herold, tenha ou não existido a Sra. Stair, a verdade é que Borges nunca escreveu aquela porcaria, mas ela continua circulando pelo mundo e apontando−o como autor".

Outro exemplo famoso envolveu o escritor estadunidense Kurt Vonnegut Jr. Circula na internet um discurso que ele não escreveu. Mais, foi divulgado que a leitura desse texto ocorreu em uma faculdade que ele não visitou e que está localizada em uma cidade que ele sequer sabia que existia.

Na virada do século, a vítima foi o colombiano Gabriel Garcia Márquez. Atribuíram ao Prêmio Nobel de Literatura, como se fosse um testamento literário (pois ele estaria com câncer linfático), um texto choroso e ridículo chamado Marionetes. Garcia Márquez ficou tão irritado com essa estupidez que convocou a imprensa para uma entrevista coletiva e declarou, entre outras coisas, "o que pode me matar não é o câncer, mas a vergonha de ter escrito uma coisa tão ruim".

O verdadeiro autor de Marionetes é o mexicano Johnny Welch, que o publicou em 1996, em um livrinho quase desconhecido: Lo que me há enseñado la vida (O que a vida me ensinou). Welch assumiu a autoria e pediu desculpas – embora ressalte que não foi ele quem iniciou a divulgação do texto na internet.

Qual é a lição que fica de tudo isso? A de sempre: o mundo está cheio de espertinhos. Com o que é publicado na internet é necessário desconfiar sempre.

De qualquer forma, quem conhece com profundidade Borges e Garcia Márquez sabe que eles seriam incapazes de "cometer" esses lixos que lhes são atribuídos.



INSTANTES

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a serio. Seria menos higiênico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, mais rios.
Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e comeria menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida: claro que tive momentos de alegria. Mas, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos: não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda−chuva e um pára−quedas; se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais o amanhecer, brincaria mais com crianças...
Se tivesse outra vez a vida pela frente.




MARIONETES

Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente, pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria enquanto os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e gozaria um bom sorvete de chocolate.
Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida, me vestiria da forma mais simples, me jogaria de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo como minha alma.
Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas um poema de Mario Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua. Regaria as rosas com minhas lágrimas, para sentir a dor dos espinhos e o encarnado beijo de suas pétalas.
Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida. Não deixaria passar um só dia sem dizer às gentes – te amo, te amo. Convenceria cada mulher e cada homem que são os meus favoritos e viveria enamorado de amor. Aos homens, lhes provaria como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar. A uma criança, lhe daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha. Aos velhos, ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês, os homens... Aprendi que todo mundo quer viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade esta na forma de subir a escarpa. Aprendi que, quando um recém−nascido aperta com a sua pequena mão pela primeira vez o dedo de seu pai, o tem prisioneiro para sempre. Aprendi que um homem só tem direito de olhar um outro, de cima para baixo, para ajudá−lo a se levantar.
São tantas coisas que pude aprender com vocês, mas, finalmente, não poderá servir muito, pois quando me olharem, infelizmente estarei morrendo.

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