Em determinada ocasião um comentário despretensioso (ou a citação de uma frase ou a recordação de alguma palavra) aciona algum tipo de gatilho emocional, despertando lembranças que estavam escondidas nas fendas da memória. Desta forma, o que estava destinado a desaparecer, envolto em poeira e abandono, ressurge como se tivesse ocorrido em passado próximo. É nesses momentos – constituídos pelas filigranas afetivas e pela lembrança de algumas histórias aparentemente sem importância – que surge o vocabulário da intimidade familiar, o glossário das minúcias que trafegam entre a leveza e a exaustão da vida diária.
Com esse propósito instigante, Natalia Ginzburg relatou parte da história do clã Levy no depoimento autobiográfico Léxico familiar. E, para que não haja nenhum tipo de confusão, para que o espectro ficcional não contamine a narrativa, a voz da autora informa aos leitores: "Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada: e toda vez que, nas pegadas do meu velho costume de romancista, inventava, logo me sentia impelida a destruir tudo o que inventara".
Tudo é verdade. Por mais inverossímil que possa parecer. As idiossincrasias do pai, Giuseppe (Beppo ou Beppino), são hilárias. Difícil aceitar que aquele mau humor não foi inventado. Também é difícil acreditar nos dramas gerados pela guerra. São episódios que provavelmente teriam melhor recepção se estivessem localizados no interior de algum romance. Mas, infelizmente, não estão. A vida é muito mais cruel do que a ficção. E, talvez seja esse o grande charme do livro de Natalia Ginzburg: combinar o pouco crível com o real.
Natalia descreve a aparente fragilidade de Lídia, a mãe. Com lentidão, sem precisar fazer grande esforço, vai mostrando a determinação dessa mulher (aparentemente submissa) que conseguiu criar filhos e netos, que conseguiu sobreviver ao horror da guerra. Entremeando esse relato, outras cenas, outros episódios. São registros descontínuos, cheios de hiatos − lugares e lembranças que a autora não quis preencher.
Ao dar um tratamento literário ao "vivido", Natalia, com discrição e timidez, adotou a posição de coadjuvante. Os acontecimentos mais importantes de sua vida (casamento, filhos, morte do primeiro marido) estão lá, mas foram narrados de forma tão superficial que parecem acessórios. Seguindo um conceito político, fruto de uma militância de resistência ao governo de Mussolini, o que importa são as histórias dos outros, dos irmãos, dos vizinhos, dos amigos da família. O que importa é registro social daqueles tempos sombrios em que o fascismo e o nazismo quase destruíram a civilização. Pareceu−lhe mais significativo relatar a iniquidade, o antissemitismo, a arbitrariedade jurídica, as mortes na prisão. No entanto, executa essa tarefa com bom gosto, sem se perder nos ritos da compaixão.
Depositária das histórias que constituem o inventário familiar, Natalia Ginzburg escreveu um belíssimo depoimento memorialista, agradável de ler, sem compromissos com o discurso piegas, sem amarras sentimentaloides.
Adorei seu blog és um grande crítico literário. Parabéns. Se gostas de poesia. Te convido a visitar meu blog http://emaranhadorufiniano.blogspot.com
ResponderExcluirLá também tem alguns contos e crônicas. Seus comentários serõ muito bem vindos. Abrçs!!!
Já estou te seguindo.
ResponderExcluirMarcio: Obrigado!
ResponderExcluirDeve ser fantástico, com um registo social marcante, por tudo o que é descrito aqui e com a particularidade de podermos mergulhar em factos reais.
ResponderExcluirUm abraço Raul
oa.s
OceanoAzul. Sonhos: Beijos!
ResponderExcluirrelato perfeito, resenha bem desenvolvida, muito bom te ler Raul. Rosa Ramos
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