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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A PREGUIÇA COMO MALDIÇÃO DIVINA

De todos os pecados capitais, a preguiça deve ser o que possui maior número de adeptos. Talvez por ser um delito "menor", talvez porque ninguém consegue escapar dos seus mecanismos de sedução.

Um dos romances de João Gilberto Noll, Canoas e Marolas, aborda o tema com segurança. Escrito a mão, em diversos cadernos escolares − durante pouco mais de seis meses, quando o escritor morou na Costa da Lagoa, em Florianópolis –, não é um texto destinado ao leitor médio, especialmente aquele que gosta de confundir entretenimento com literatura.

Quase nada acontece nas 105 páginas do romance. Essa lentidão constitui, no entanto, a melhor qualidade do livro. Noll faz parte daquele grupo de escritores que defendem a tese de que não se deve dar muita importância ao enredo, visto que todos os temas se repetem e não há nenhuma novidade no horizonte depois que a cultura grega catalogou todos os mitos ficcionais. Resta então, como tábua de salvação da literatura, a arte sempre deficitária de contar a mesma historia de forma diferente. Não é tarefa fácil.

Carregado de ambigüidades, tensões mal resolvidas, entrelinhas, parágrafos longos, poucos diálogos, Canoas e Marolas é um texto denso, complexo, desses que exigem duas ou três releituras – única forma de se aproximar do que está escondido na indeterminação geográfica que Umberto Eco chamou de o bosque da ficção.

Ao contar a historia de um homem que procura por sua filha (Marta) e, com isso, a si mesmo, Noll parece brincar de esconde−esconde com o leitor, construindo uma atmosfera onde o existir não tem serventia e a vida se resume ao discurso, essa névoa incandescente de palavras e mal entendidos. É o relato da fragilidade humana, instante em que as sobras e sombras travam uma batalha agônica pelas poucas coisas que restaram para lembrar e as muitas que devem ser esquecidas – o que, de certa forma, remete a Samuel Beckett.

Mas, ao contrário de Beckett, que projeta um mundo abjeto, quase sem perspectivas, Noll contempla a placidez dos acontecimentos como se deles esperasse, no último momento, uma reviravolta. Só assim justifica o esforço que é enfrentar os desafios propostos pela narrativa e extrair o máximo da linguagem, mostrando que o desassossego pode ser enunciado como se fosse poesia.

O protagonista de Canoas e Marolas vive em um mundo inercial, onde a vontade de nada fazer impera. Inventando o próprio cenário e estabelecendo as regras do labirinto ficcional, deixa que os acontecimentos se desenvolvam diante dos seus olhos. A ilha, onde ele foi procurar Marta, é um recorte, um pedaço de terra pinçado do continente, uma forma de se isolar, de fugir das perguntas, de negar as respostas.

É com o nascimento do neto que o desequilíbrio se produz: uma nova vida colocando em xeque o torpor. Mas há pouco para fazer. Os sentimentos, infelizmente, estão mineralizados, assim como o corpo e a alma. Depois da leitura de Canoas e Marolas, a preguiça, apesar de prometer uma redoma de tranqüilidade, se revela como a forma com que Deus condenou o homem ao sofrimento.

2 comentários:

  1. Se para escrever é preciso sofrer, a doce preguiça (e não esse ócio criativo)é essencial para se obter um pouco mais de liberdade criativa. Mas lembro a você que o melhor romance sobre o signo da preguiça é o OBLOMOV do Ivan Goncharov, um desses milagres russos do século XIX.

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  2. Rafael: Confesso minha ignorância. Não conheço o texto do Goncharov!

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