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quarta-feira, 4 de abril de 2012

OS GREGOS, AH, OS GREGOS

Não faltará quem gaste saliva a dizer que o passado deve ficar no passado, na outra margem do Estige. O tempo é o agora, esse instante insaciável que está devorando os dias e as noites e as ideias mais (in)felizes. Apesar de todos esses protestos, alguns menos sábios, outros mais idiotas, uma proposta se destaca no intervalo conceitual que dúzia e meia de chatos nomeiam com o pomposo e inócuo título de o a-pós-o-moderno. Todo leitor deveria, de vez em quando, todo o tempo possível ou o que lhe for possível, retomar, retornar à estrada mal cuidada, cheia de buracos e perigos, que leva até as antiguidades da literatura grega. Um mergulho nas origens. A poesia de Homero é farol a iluminar o tráfego, o trafico de pensamentos, troca de informações, o conhecimento sem fronteiras, liberdade para a imaginação. Há uma edição mais ou menos recente da Odisséia. Tradução direta do grego. Apesar da linguagem rebuscada, a necessidade de ler com o dicionário ao lado, é texto indispensável, indissociável de quem sente a necessidade de navegar pelos mares e oceanos que unem a invenção com o imaginário. Ao mesmo tempo, como partícula consagrada por outro tempo, o texto mitológico serve de recibo comprobatório de que foram os povos da península helênica que inventaram algumas nuanças dessa imprecisão que chamamos de literatura. Também foram eles que criaram a forma de pensamento usada diariamente – na modernidade, os ingratos se recusam a pagar tributo a quem os tirou de dentro da caverna e lhes apresentou à luz. Luz do conhecimento. É difícil voltar às sombras depois que se descobre o quanto é gostoso o calor solar. É difícil se controlar
diante do que amedronta. Muitas vezes vigora o suave ignorar das regras básicas de sobrevivência em território hostil, uma das mais importantes aconselha que não se deve olhar de frente para a fonte de energia que brilha no horizonte, queimadas as retinas só restará a inevitável companhia ao velho escritor, aquele mesmo que, para diminuir a solidão, precisou povoar o mundo com versos sangrentos, protagonizados por heróis e assassinos, deuses e semideuses, a cólera de Aquiles, as trapaças de Odisseu, o par de chifres a enfeitar a testa de Menelau, a covardia de Páris, a coragem de Heitor. E, não menos importante, a combinação que resultou fatal para o povo troiano: a beleza de Helena e a maldição que envolveu Cassandra. Em algum momento, como que a querer mostrar a que fim se destinava essa trama, rama a se espalhar por centenas de páginas, a cegueira não impediu o velho de criar uma guerra. Um conflito interminável, milhares de corpos estendidos na praia, um banquete quase perpétuo para os abutres. Dez anos os gregos acampados diante das muralhas intransponíveis. Dez anos de espera. A ironia está no império do absurdo: não foi espada, lança ou feito guerreiro que encerrou a luta. Foi ardil, truque barato. Ganharam a guerra e perderam a honra. Esqueceram que a glória somente pode ser alcançada por aqueles que conseguem evitar a sujeira produzida pela iniquidade. Queimar mil vezes os destroços troianos jamais conseguirá apagar a nódoa, caráter é medalha que se conquista diariamente. Aos vencedores os despojos, os estupros, os escravos, as palavras que não deveriam ser pronunciadas contra guerreiros, contra aqueles que verteram sangue nas areias que circundavam Tróia. Depois que tudo terminou, o terror perdendo as contas do colar de insensatez que se segue à vitória, a narrativa
continua em outro volume, o charlatão enfrentando peregrinação insana entre o Mediterrâneo e o Egeu, o procrastinar incessante do retorno à Ithaca e à Penélope. O leitor com maior grau de sensatez deve fechar esse livro e abrir outro, outro autor, uma continuação diferente para a narrativa que nos pegou pelas mãos e nos levou a novo patamar. Apesar de angustiados, é conveniente deixar que as tristezas no peito se aplaquem, disse Aquiles para Príamo, diante do cadáver de Heitor. Os olhos nos alegram mais do que os ouvidos, disseram Édipo e Tirésias antes de perderem a visão, antes de escutarem algum tipo de canto das sereias – que é, guardadas as proporções, um horror menor em comparação com a morte de um filho. Depois da selvageria dos gregos, depois de ver os destroços da cidade sitiada, talvez seja tempo de conhecer outras histórias. Deixemos nos levar em outra direção. Depois de Homero, Virgílio. Navegar é preciso, viver não é preciso, diz aquele que narrou a construção de outro lar. Pelas mãos dos latinos, Enéias carregou para o norte de África o bom combate e a História.

3 comentários:

  1. Raul, amei isto aqui! Sempre adorei mitologia( grega, celta, etc etc...)pq achas que sou Têmis? rs escolhi, não é de nascimento. Mas quis que assim fosse...
    Texto excelente! Grata!

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  2. Jeanne: Têmis, a guardiã dos juramentos dos homens e da lei.

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  3. Um belo texto, deu-me vontade de ler a Odisséia novamente, com acento agudo, sem ele a palavra perde a força.

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