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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

DIZZY GILLESPIE, LONDRES E EU


Em novembro de 1990, portanto, no século passado, por uma dessas felicidades que o tempo não permite repetição, Londres era uma festa. Pelo menos era o que me parecia. Surpresas todos os dias. Boas surpresas. Havia entusiasmo até em ir à lavanderia da esquina. Enquanto as roupas ficavam girando sem parar na maquina, enfileirávamos no meio−fio da rua as latinhas vazias de Foster’s, uma cerveja australiana bem forte, comprada no pub ali ao lado. Nossa sede, a minha e a da futura mãe do meu filho, era interminável.

A imagem de Londres que guardei na memória se confunde com livros e jazz. Na Charing Cross Road comprei quase uma biblioteca. Quando voltei ao Brasil, o funcionário da alfândega perguntou se eu era comerciante de livros. Tive vontade de dizer que sim, mas não era verdade. Nas lojas de discos, adquiri dezenas de fitas cassetes, Miles Davies, Chet Baker, Art Tatum, Bill Evans, diversas coletâneas, sons que me ajudaram a enlouquecer um pouco mais. Enquanto a cidade encantava meus olhos, o jazz fornecia a trilha sonora. Deveria ter adquirido CDs, mas, naqueles tempos, a velocidade da tecnologia não era muito rápida e, comprovando o meu pessimismo com a modernidade, imaginei que seriam inúteis no Brasil. Seis meses depois estava arrependido. Então só me restou, na medida do possível, nos anos seguintes, substituir algumas daquelas fitas por CDs.

Fomos visitar a Saison Poetry Library, que fica no Southbank Centre. Difícil esquecer aquele ambiente, livros de todas as partes do mundo. Iluminações poéticas misturadas com a beleza daquele final de tarde. Também não consigo apagar da memória outra coisa. Uma banda americana estava se apresentando ali perto da biblioteca. Jazz de primeira classe. Sentados bem em frente aos músicos, ligeiramente decepcionados pelo bar não ter Foster’s, aceitamos que várias garrafas de Heineken (ou será que foi de Stella Artois?) substituíssem o precioso néctar. Durante um dos intervalos, empolgado com tudo aquilo, diante do band leader, um sujeito de quase dois metros de altura, venci a timidez e deixei escapar um Congratulations, wonderful music!  Ele apertou minha mão e disse alguma coisa, não entendi o quê, meu inglês era horrível (depois desses anos todos, continua risível). Balbuciei algum grunhido em resposta e nos separamos. No bar, a cerveja ajudou a diminuir a tensão.

Alguns dias depois, não lembro se foi em algum jornal ou nas páginas da Time Out, li uma notícia espetacular: Dizzy Gillespie estava se apresentando no Ronnie Scott΄s Club, lá no SoHo. Cheio de esperanças, comecei a fazer planos, era a minha chance de estar na presença de uma lenda viva. A possibilidade de ouvir, entre outros clássicos, A Night in Tunisia e Groovin’ High me alegraram. Muito. O delírio foi de tamanha dimensão que imaginei ser possível conseguir um autografo do trompetista.

Fui bloqueado. Vinte zagueiros impedindo o avanço do atacante. Foi feio. Frases enérgicas − onde expressões estúpidas como sold out e fully booked se destacavam − me fizeram voltar à realidade. Não bastasse, o massacre se completou diante da calculadora. O preço do ingresso e a tabela de câmbio revelaram que o inferno está escondido em alguns números. Não houve jeito, tive que abandonar a ideia. Não consegui ver um dos caras que preencheram o silêncio com música. Gillespie cumpriu esse doce desvario ao lado de gênios como Cab Calloway, Charlie Parker, John Coltrane e Lalo Schifrin.

Alguns dias depois, voltamos para casa. No avião, sintonizei o canal de jazz. Pura decepção. Ninguém consegue se entusiasmar com música de elevador. Queria algo com alma, com mais tempero. Queria swing. Então, retirei da mochila o walkman e permiti que o fraseado surpreendente de Manteca, Salt Peanuts e Anthropology aliviasse o estresse da viagem.

P.S.: John Birks Gillespie, vítima de câncer no pâncreas, faleceu em 06 de janeiro de 1993. Tinha 76 anos.

4 comentários:

  1. Mais um texto para a pasta dos meus favoritos. E 1990! Parece que foi ridiculamente ontem. Mas, mas. Tudo mudou. Ou quase. O piano de Thelonius Monk que ouço agora ainda é o mesmo. Abraço, Raul.

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  2. Obrigado, Maurício! A música do Dizzy também continua imutável! Felizmente!

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  3. MAGNÍFICA NARRATIVA E AINDA COM BOAS MÚSICAS COMO ESTAS É ELEMENTAR MEU CARO RAUL...
    EU AMO JAZZ...

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