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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

ANTHONY BOURDAIN



Os pecados da cozinha se cobrem com molhos. Unindo ausência de diplomacia e sinceridade, o livro de memórias do chef de cuisine estadunidense Anthony Bourdain, Cozinha Confidencial, em alguns momentos se assemelha a um tanque de guerra, desses que vão atropelando a tudo e a todos, sem se preocupar com quem acredita que o mundo culinário é a antessala do paraíso.

Assustador. Esse adjetivo é a base que define o estilo saboroso de escrever de Bourdain − temperado com um senso de humor incomum. Sem medo de parecer iconoclasta ou de estar cuspindo no prato em que come, o chef não perde tempo com fantasias sobre a arte gastronômica. Com a mesma facilidade com que desossa um faisão, consciente de que a cozinha apenas reproduz o que acontece lá fora − nas ruas −, Bourdain descreve impiedosamente o dia−a−dia de quem trabalha com a haute cuisine. Não é uma imagem agradável. Não é um serviço fácil. Não é um ambiente saudável. Na visão de Boudain, o vestiário do inferno se caracteriza por representar um universo (...) sobrecarregado de testosterona onde acontecem várias histórias nojentas – muitas delas comprovando que a burguesia noveau riche sente incomensurável prazer em comer lixo no topo do mundo.

Transitando entre os restaurantes da moda (e ele trabalhou em quase todos!), procurando fugir da comida com gosto de isopor, muitas vezes feita apenas para decorar a foto publicada no dia seguinte na coluna social de algum panfleto sem identidade, Boudain ambiciona levar adiante questões mais sérias como saborear, sentir os aromas e mastigar aquela coisa tão boa. Definitivamente, não é pedir demais. Embora o caminho seja longo e − para que isso se concretize − muitas vezes se faz necessário caminhar na contramão.

Mas não é só isso. Se cozinhar consome energia e tempo de trabalho, ainda há a necessidade de enfrentar as inúmeras crises diárias com fornecedores, garçons, cozinheiros – enfim, a entourage que povoa a ausência de espaço do ambiente em que a comida é preparada. É preciso ser muito organizado (e criativo) para superar todos esses milhares de pequenos problemas que surgem a cada instante, como se fossem fruto de combustão espontânea. Nos períodos em que Bourdain não conseguiu sobreviver ao olho do furacão − ou queria apenas relaxar −, a célebre trilogia sexo, drogas e rock−and−roll (não necessariamente nessa ordem, porque as drogas sempre tiveram primazia) dava o ar da graça e demorava uma eternidade para sair de cena. As descrições das loucuras auto−destrutivas (heroína, cocaína e dezenas de outros portais na direção dos paraísos artificiais) não constituem a parte mais simpática do livro. Aqueles que têm estômago fraco ou alma gentil devem evitar essas páginas – sob risco de nunca mais poderem almoçar ou jantar despreocupadamente.

A soma desses fragmentos autobiográficos fornece um esboço – no mínimo – verossímil (e, portanto, desagradável) do mundo em que Bourdain vive: Minha paixão pelo caos, pela conspiração e pelo lado obscuro da natureza humana colore o comportamento de meus pupilos, boa parte dos quais já vive muito próximo das fímbrias da conduta aceitável.

A sobrevivência tem seus custos, deixa escapar o chef em outro contexto, mas que, obviamente, faz sentido quando ele está descrevendo/vivenciando as situações que acontecem freqüentemente dentro do ambiente de trabalho. Esse cenário não melhora nem um centímetro quando Boudain se desfaz no sentimentalismo quase singelo de personagem de romance do século XIX e deixa escapar que Sou apenas um cozinheiro à antiga com uma índole agressiva e um coração cheio de inveja. Nada mal para quem poucas páginas antes havia se auto−definido como um caldo turvo infernal de frustração reprimida, energia nervosa, cafeína e álcool.

A couraça emocional se mostra totalmente diluída no cardápio que dá sossego ao seu combalido coração (órgão que muitos ex−funcionários juram inexistir): Vinho tinto, carne, alguns cogumelos comuns e umas poucas cebolinhas, bouquet garni, talvez uma massa de corte largo ou uma duas batatas simplesmente cozidas para acompanhar. Um naco de pão para raspar o molho. Parece comida de trabalhador da construção civil. Daquelas servidas em marmita.

Cozinha Confidencia: uma aventura nas entranhas da culinária (no original: Kitchen Confidential: adventures in the culinary underbelly) foi publicado em Estados Unidos em 2000 e no Brasil em 2001. A continuação desse clássico autobiográfico foi publicada em Estados Unidos em 2010 e no Brasil em 2011. Ao ponto: uma carta de amor sangrenta ao mundo da culinária (no original: Medium raw: a bloody valentine to the world of food and the people who cook), para o bem e para o mal, não renega a promessa amorosa: a quantidade de sangue que escorre pelas páginas do livro provavelmente é suficiente para abastecer algum hemocentro por vários anos.

Depois que de uma série de desacertos (fracasso do primeiro casamento, aposentadoria como chef, cancelamento de programa de televisão) Bourdain – mais uma vez! – enfrentou o que chama de a luz amarelada de minha infelicidade. Como sempre acontece em filmes clássicos, no momento em que você imagina que mocinho vai ser derrotado, Bourdain deu a volta por cima e saiu das encrencas sendo aclamado como herói. Ou quase isso. Parte da glória obtida na batalha pela vida acabou dissolvida pela língua tão afiada quanto uma daquelas facas usadas para filetar peixe. Nos altos e baixos, o cara nunca procurou mudar. É um franco−atirador, desses que não descansam até ter abatido tudo o que se move no horizonte. Em uma das primeiras rajadas constata que Talvez esse tal de "beautiful people" seja muito feio. O engraçado é que, na boca de outra pessoa, esse tipo de declaração talvez soasse hipócrita ou debochada – na de Bourdain, ao contrário, faz sentido. Os ricos são a escória sobre a Terra, mas também são aqueles que ajudam a pagar o serviço que torna possível a haute cuisine. O que eles não conseguem comprar é outra coisa – educação. E é nesse sentido que ficam feios. Mais descartáveis do que os produtos que consomem. Qualidade é outro departamento. Quem passa parte do dia, ou todo o dia, "chapado" com poder, cocaína, heroína ou álcool nunca conseguirá mudar de estágio no processo civilizatório, pois tudo o que tocam (em vários sentidos) se transforma em poeira. Essa é a moral que Bourdain prega no deserto – principalmente quando, usando o discurso dos recém−convertidos, lembra que Tratar o desespero com drogas e álcool é uma tradição ancestral. E, para que ninguém imagine que está blefando, enumera vários sujeitos que embarcaram nessa canoa furada – sendo ele mesmo o mais significativo desses exemplos.

Na parte divertida do livro defende que todos os alunos secundaristas deveriam aprender a cozinhar na escola. E complementa a tese defendendo a idéia de que a omelete é o fulcro primário para fornecer um novo olhar, ou, na pior das hipóteses, boas maneiras ao mundo: Talvez o aprendizado da omelete deva coincidir com o de trepar. Acho que deveria haver um acordo tácito de que, em caso de perda da virgindade, o parceiro mais experiente seja o encarregado de preparar uma omelete para o outro – transmitindo o conhecimento num momento supostamente importante e memorável. Típico Bourdain, velho de guerra, no seu estágio tipicamente Bourdain. Porrada, sem compaixão, só para ver o adversário caído no chão, a gritar de dor.

Provavelmente é esse o sentimento que o faz escrever um capítulo do livro para responder um questionamento básico: o que é necessário para manter um restaurante funcionando? Sem se importar com algumas questões delicadas, Bourdain vai logo colocando o dedo na ferida: na atual recessão econômica mundial, como a que estamos vivendo, o buraco é muito, muito mais embaixo. E alguns profissionais nunca vão encontrá−lo. Nem adianta procurar − mesmo se usarem lupa, microscópio ou telescópio. A desgraça se esconde na intimidade permissiva dos números, principalmente aqueles que indicam quanto de lucro é possível obter em cada mesa, em cada noite de funcionamento. É possível que as pessoas tenham que recomeçar a cozinhar. Para economizar dinheiro e porque a dura realidade é que os desempregados têm mais tempo para atividades do gênero. Outra coisa: como ele lembra em algum lugar, Não existe mentira na cozinha. (...) Ou o cara sabe cozinhar, ou não sabe. Ninguém vive de truques (inclusive os publicitários) ou de sorte. Talento não está à venda na "delicatessen" da esquina.

Sem clientes, sem o lucro abusivo com a venda de vinho, precisando conviver com o rebaixamento da cultura gastronômica, Bourdain não se constrange e coloca diante do leitor a visão "mais otimista" possível para o mundo dos restaurantes: Só espero que, no futuro, sair à noite não signifique pegar um garrafão de Wolfschmitz ou um vinho de caixa, ligar a tevê e assistir a programas de culinária onde as pessoas preparam pratos que você não vai poder preparar tão cedo.

Os capítulos mais estranhos do livro se referem às mudanças de comportamento produzidas pelo nascimento da filha. Pai extemporâneo, Bourdain percebe, pela primeira vez na vida, que é mortal, que viver implica em ser responsável pelo outro, por um outro que até bem pouco tempo não era sequer considerado como possível. Entre o lirismo e a luta muitas vezes inglória para esculhambar o fast−food (principalmente o reino encantado de Ronald McDonald), o chef – finalmente! – rompe o muro que construiu em torno de si mesmo. Esse retrato sentimentalóide infelizmente não consegue captar o melhor ângulo de Bourdain − zangado ele se mostra mais divertido, mais interessante.

No resto do livro, Bourdain volta ao normal, o tom de pessimismo sorrindo de satisfação ao contemplar os escombros da civilização capitalista. Dedica capítulos contra personagens famosos no mundo gastronômico como Alice Waters e Alan Richman. Recordando os protagonistas que povoaram Cozinha Confidencial ou identificando os vilões e os heróis da culinária mundial, solta diversas saraivadas de insultos. Os adjetivos maldosos vão sendo fatiados diante dos olhos do leitor como se fossem cebolinhas ou algum legume incluído no acompanhamento. Desvendando os bastidores do programa televisivo Top chef ou descrevendo a reação furiosa de Marco Pierre White sobre a cozinha molecular, Bourdain está em seu elemento natural: o mundo da maledicência, da intriga e da agressão. Enquanto palavrões e ofensas se misturam nas páginas, não é difícil imaginar o quanto foi divertido escrever aquilo tudo.

E é isso, Ao ponto é um livro escrito por um chef de cuisine, cheio de amor e fúria, significando muitas coisas. E, claro, garantindo diversão 100% do tempo.

2 comentários:

  1. Muito interessante sua crítica.
    Fica a vontade de ler o livro, para conhecer melhor o novo anti-cristo do Olimpo da Gastronomia.
    :)

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  2. Olinda Morgado:

    Novo ele não é! Mas, o seu senso crítico é fantástico (principalmente nessa área em que o ego é prato principal!)

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