segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
UM SONHO DE AMOR
Os filmes italianos sobre os conflitos familiares são imbatíveis. Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli. Dir. Luchino Visconti, 1960), Teorema (Teorema. Dir. Pier Paolo Pasolini, 1968), Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi. Dir. Ettore Scola, 1976), La luna (La luna. Dir. Bernardo Bertolucci, 1979), Parente é serpente (Parenti serpenti. Dir. Mario Monicelli, 1992) e O quarto do filho (La stanza del figlio. Dir. Nanni Moretti, 2001) são exemplos de um cinema que nunca teve medo de transitar entre temas tão difíceis como a fraternidade, as relações entre os pais e os filhos, a perda, a velhice.
O belíssimo Um sonho de amor (Io sono l’amore. Dir. Luca Guadagnino, 2009) é um filme marcado pela influência dos clássicos. A forma sensível com que a narrativa se concentra na implosão familiar poderia ter sido elaborada por Vittorio de Sica ou Michelangelo Antonioni ou Federico Fellini. Cada um desses diretores, é claro, acrescentaria um olhar pessoal, um enquadramento único, mas nenhum deles ignoraria o que a narrativa tem de singular: o mundo italiano.
O enredo é construído com paciência. Soma de detalhes. Um daqueles momentos em que o cinema flerta – amorosamente – com a lentidão, com os sentimentos mais íntimos, com a serenidade. Durante quase uma hora quase nada acontece. A câmera, sem pressa, procura revelar ao espectador que conflito está germinando, mas também procura mostrar o quanto será difícil identificar o momento em que irromperá.
Quando o patriarca da família Recchi decide se aposentar, delega ao filho, Tancredi, e a um dos netos, Edoardo (interpretado por Flávio Parenti), a responsabilidade pelos negócios familiares. Em tempos de crise econômica, faz−se necessário tentar driblar as diversas formas de pressão do mercado internacional. Os conceitos mais idealistas são arremessados na lata de lixo. Edoardo, que tem noções muito claras de justiça social, não concorda com um sistema econômico que dá mais valor ao dinheiro do que ao bem−estar dos empregados.
Nesse momento de transição social, Edoardo se torna amigo do jovem chef de cuisine Antonio Biscaglia (interpretado por Edoardo Gabbriellini). Embora seja um personagem que vive marginalmente aos dramas da família Recchi, Antonio, em determinado momento, se transforma em uma reencarnação do anjo da anunciação. E, desta forma abrupta, rompe com o muro de contenção que garante a estabilidade narrativa.
Emma (interpretada por Tilda Swinton) é uma imigrante russa, mãe de Edoardo, Gianluca e Elizabetta, os três filhos de Tancredi, e encarna o estereotipo da esposa passiva e insatisfeita emocionalmente.
Essa síntese parece igual à de dezenas de outros filmes. Não é. Primeiro porque a carpintaria cinematográfica está expressa em um andamento muito diferente daquele que é proposto pelo cinema comercial. Segundo, porque Um sonho de amor é um filme admiravelmente erótico. Cada cena é a "essência do sabor", um elemento do jogo amoroso. As refeições, preparadas por Antonio, simbolizam as preliminares, aquele momento sublime que antecede ao sexo. É durante as primeiras carícias, quando os corpos vão descobrindo um ao outro, percebendo texturas e sabores, que a excitação alcança o seu degrau mais alto. Nesse momento mágico, o desejo se bifurca entre o êxtase resultante da união dos corpos ou a frustração. Ou uma coisa ou outra. Não há meio termo.
A conquista amorosa se efetiva em uma refeição. Emma, na companhia da sogra, Rori, e de Eva, a noiva de Edoardo, vai ao restaurante em que Antonio trabalha. Ele prepara pratos especiais para cada uma delas. Para Emma, camarões com ratatouille e molho agridoce. A ligação entre o prazer sexual e o prazer gastronômico se efetiva no momento em que o garfo transporta a comida até a boca. A porta de entrada para o prazer sexual é rompida pela excitação, pela possibilidade da entrega. No encontro entre a mulher e o amante, as tentações mais perversas – e, inevitavelmente, as mais deliciosas – estão metaforicamente simbolizadas pelas cores que compõem a comida, pelo formato dos camarões, pelo sabor que embriaga o paladar, pelo enquadramento fotográfico: são sinais de que o orgasmo se aproxima, atingindo com furor a personagem e o espectador. É uma cena emblemática. Extremamente excitante. E que é interrompida abruptamente, como convém ao retratar o proibido. O interdito se pronuncia mais alto, calando qualquer forma de contestação.
O destino de Emma não pode mais ser corrigido. A frustração sexual precisa ser anulada. A libido exige outra fonte alimentar. E isso acontece um pouco mais tarde. Mas, em lugar de se sentir saciada, Emma quer mais. Muito mais. É o corpo sexual que passa a estabelecer as regras do jogo de cartas marcadas. Emma se entrega – apaixonadamente. Sem medir as conseqüências. Em cenas de grandiosa plasticidade, relacionando o ato amoroso com flores e frutos, com as forças da natureza, nada é excesso, apenas bom gosto.
O que Emma não percebe é que a traição amorosa não suporta a honestidade, não admite que alguém reclame.
Em um jantar na mansão Recchi, Edoardo percebe a traição da mãe. E sem saber se a dor que o atinge é provocada pela quebra do amor materno ou pela traição da mãe com o amigo, entra em conflito. Sintomaticamente, como que a religar o presente italiano com o passado russo da mãe (que Edoardo adora), na hora da crise, mãe e filho discutem em russo − não em italiano. O calor da paixão está ligado às estepes, à necessidade de sobreviver ao gelo siberiano, não à serenidade dos vinhedos ou das praias do Adriático.
O resto do filme é apoteótico e previsível. A contenção, a leveza, a paciência do início, tudo o que havia sido construído lentamente, naufraga com o desaparecimento da união familiar. Com rapidez, com furor, o mundo ordenado da família Recchi desmorona. Nada sobra − exceto desespero, perda e luto.
P.S: Também está disponível em DVD outro filme sobre gastronomia: Receitas de amor (Love’s kitchen. Dir. James Hacking, 2011). É uma historinha leve, sem muita substância. Na melhor das hipóteses, uma espécie de conto de fadas ambientado no interior da Inglaterra.
Chef talentoso perde a esposa em um acidente de trânsito e entra em depressão. A vida de todos os envolvidos muda de figura quando ele compra um pub em uma vila do interior da Inglaterra e o transforma em um restaurante acima da média. Além da participação especial do Super chef Gordon Ransey, não se deve desprezar o charme e a graça de Claire Forlani. No mais, um saco de pipocas de micro−ondas e um bom sofá serão o suficiente para enfrentar esse festival de lugares−comuns e uma fotografia culinária bastante apetitosa.
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