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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

MÁQUINA DE PINBALL


Quem é que leu a novela Máquina de Pinball, de Clarah Averbuck? Você? Apesar das possibilidades de cometer algum tipo de engano, a bola de cristal está no conserto, não é difícil fazer previsão. Na república do bananão, onde a canalha se orgulha do que não leu, os índices de audiência são ridículos e arrisco palpite que quase ninguém saboreou desse néctar. Nenhum esforço desumano, somente 72 páginas. Nitroglicerina pura. Em alguns momentos, o livrinho imita o sentido sem sentido daqueles carinhas sem carinho que enlouqueciam on the road, rota 66, praias da Califórnia, fronteiras com o México, novas formas de alcançar os paraísos artificiais que acenam alegremente daqui e dali com bandeirinhas de siga em frente, os semáforos do prazer liberando o tráfego, digo, o tráfico. Em outras ocasiões, o nariz empinado, blasé, de quem escorregou pelo tobogã europeu na direção do delírio, algo entre cool, pretensioso e equivocado, com algumas coisas legais e outras de dar pena. A educação refinada e o refinado desprezo pela working class. As chuvosas e geladas ilhas britânicas. O país da rainha velha e perfumada. Nenhum desprazer consegue conter o prazer de ter prazer.

Usei dos benefícios da Internet, Estante Virtual, nem lembro mais quanto precisei desembolsar por uma cópia que, francamente, já teve dias melhores, ou melhor, um dono menos cuidadoso. Agora protegido de maus−tratos, ao lado de outros livros, o exemplar acusa não ter sido amado por leitor apaixonado, ajoelhado diante do texto, a pedir mais, a querer mais, prometendo coisas impossíveis, por exemplo, bom comportamento. Mentira, claro! No transcurso sem recurso da vidinha mais ou menos o procedimento recomendado por nove entre dez estrelas de cinema é negar a paz, namorar a guerra, gostar da narrativa escrita por Clarah, publicada em 2002, fulgor a incendiar as trevas que envolvem a literatura brasileira (depois, muito depois, reunião com parte de Vida de gato resultou em filme, Nome próprio, Leandra Leal dando ou negando as histórias clarificadoras de desatinos amorosos, se não assistiu, por favor, passe na locadora mais próxima e exija o filme, mande óliudi pra... prá lá de Bagdá, porque essa festa é nossa e os urubus não foram convidados).

Camila Chirivino, 22 anos, largou a faculdade de Jornalismo e de Letras pela metade, gosta de gatos, chocolate, vodca, homens magros e sem pêlos, olhos escuros, jazz e rock. Por enquanto, é tudo que você precisa saber.

Camila Chirivino: uma transfiguração das "forças da natureza". Abalo sísmico, tsunami, catástrofe apocalíptica, sinônimos por conta e risco de quem conta e risca. Personagem de estrutura camaleônica, dessas que mudam de humor e domicílio a todo instante. Corroída pelas urgências da carne, pelo narcisismo desvairado da juventude, pela ausência de medo quando experimenta novos pecados. Sem perder tempo com os espaços físicos que freqüenta, segue em frente, mapas rasgados jogados pelo chão, bússolas arremessadas nas paredes. Quem se importa com o que não importa? Porto Alegre, Rio de Janeiro, Londres, São Paulo. Suas necessidades mais imediatas estão em outra dimensão: a intensidade das paixões que consegue extrair dos homens que "come". E ela come a todos os que caem em suas garras, tesão de predadora, vampira insaciável, depois do banquete abandona os corpos esquálidos e cansados, sem utilidade imediata para uso, é hora de buscar outra vítima, o orgasmo é sempre uma meta, um alvo a ser atingido. Disse o meu nome e encheu minha boca de porra. Mas não era qualquer porra, daquelas que têm gosto de cola tenaz com água sanitária e farinha. A porra dele era doce. Doce mesmo, de verdade, gosto bom. Até me deixou sóbria. Eu, que tinha bebido sei lá quantas doses de uísque, fiquei sóbria quando o rapaz de olhos rasgadinhos gozou na minha boca.

Conjugando os verbos da fúria amorosa, Camila abandonou a província sulista e foi conhecer as cariocas folias canibalescas: O Rio é uma mulata gostosa que fode tão bem a ponto de deixar os homens todos loucos e eles largam suas mulheres e filhos e empregos e vão pra lá comer camarão e tomar caipirinha. Lindo. Tudo lindo demais. Não deu certo. Nem mesmo pro cara errado. Essa beleza toda não paga as contas que o amor cobra a todo instante, as faturas não se cansam de chegar pontualmente, um monte de papéis coloridos amontoandos debaixo da porta, a lembrar o quanto a vida é torta, daquelas sem merengue, sem cereja em cima, apenas um gosto amargo, estrago que não quer acaba mais.

Fudida estava, fudida embarcou para London London. Foi bom. Enquanto durou. O dinheiro que tinha levado. Menina levada tentou acertar as carências (afetivas, econômicas) na flauta, não colou, aquela gente − mestres na retenção anal − não conhece a ginga de corpo, não relaxa nem goza, as regras em primeiro lugar, isso não se faz, mamãe não gosta, papai não deixa. Um saco. De qualquer forma, afinou os caninos em alguns pescoços ingleses. Todos gostosos, gozosos, a vida é diversão, nada mais resta senão soltar as emoções e deixar outra música do The Stokes compor a trilha sonora desse episódio pouco valoroso. Essa sensação de conseguir o que quer é divina. Especialmente quando é na medida certa. Muito não é tudo. E tudo não é demais. Demais é quando enche o saco.

Sem mais nada de melhor a fazer, eis que volta à realidade, ou seja, ao Brasil varonil, céu anil. Sem preocupações com a transitoriedade do mundo ou saudade de amores londrinos ou posturas políticas ou o lirismo tropical, Camila soltou um valoroso focof para o que tinha ficado para trás e decidiu que já era hora de iniciar outras aventuras, outros romances. São Paulo, terra da garoa, da garota sapeca, a lubrificar a perereca em paus paulistas, hedonistas. O que posso fazer agora além de esperar sentada, comportada, com as pernas cruzadas e um cigarro na mão? O velho Lucky a dar sorte, faca de corte afiado na garganta, repartindo fumaça entre os clichês ambulantes e a música que ensurdece a cidade. Ô cidadão, troca o disco, coloca Ween ou PJ Harvey!

Camila é personagem emblemático de uma geração que vive em função dos prazeres imediatos. Também simboliza a mulher independente − que não fica restrita às limitações sentimentais quando precisa ultrapassar barreiras interpostas em seu percurso. Colchão vagabundo, estendido na sala, horas de sono inquieto enquanto o sol se espicha lá fora. Dona de casa jamais, que não foi feita para esparramar prantos enquanto lava pratos. Nas horas vagas, vagabundas, quando não está bêbada e falando merda, escreve uns textinhos legais, abissais, frilas, jornalismo alternativo nem sempre remunera, muitas vezes renumera a longa fila dos desesperados.

Camila, a que não tem medo. O passaporte ligando passado e presente, terra e história. Sofrer não é coisa simplória, então coloca ai mais uma dose de vódega, um novo disco de rock, um cigarro na boca, loucura na veia, foda−se o drama, que mais um garoto bonito se aproxima, beija bem, bom pra caralho, caralho bem−bom, arrepios e gula. Disse que queria sair com ele limpinha e sóbria, mas ele disse que sujinha e bêbada também era bacana. Bacana. O problema era esse, tudo era bacana. (...) E bacana é mediano. E mediano não me interessa. Extremos, quero extremos. A platéia, siderada por esse misto de espanto e escândalo, se ajeita na poltrona, arruma os óculos, bebe um gole de suco, sabe que o melhor ainda está por vir, no porvir, pardos são todos os animais noturnos, caçadores de emoções e sensações. Homens, eu os amo mas eles fodem com a minha cabeça. Não entendo. Entendo, claro. Mas não entendo. Ou entendo e quero tornar as coisas mais fáceis e perdoáveis para mim mesma. Argh. Preciso é dar um jeito de arrumar o caos que sou.

Arrumar. Desarrumar. Deixar andar, seguir em frente, sem amarras, a vaticinar que amarás a quem estiver por perto, incerto é viver sozinho e infeliz. Socorro. Homem, preciso de homem. Carinho. Foder até pingar de suor. Carinho. Socorro. Qualquer semelhança com a realidade nunca será mera coincidência.


Ele tinha cheiro de Xs. Meu perfume preferido. Olha o nome: Excess, Pronto, dez minutos de conversa e lá estava eu babando por um tal de Daniel. Daniel que era lindo e tinha gostos iguais aos meus. Lindo e cheiroso. Putz. Depois ainda perguntam por que fico na defensiva. Olhaí o que acontece: fico boba, babando, mocoronga olhando para a boca dele. Meu deus, que boca tinha aquele Daniel. Que boca. Que lábios. Que...
− Camila?
− Hmmm oi. Tava aqui fazendo as contas.
− Hein?
− As contas. Me perdi nos pontos, sou um verdadeiro lixo em matemática.
− A conta do bar?
− Não, a minha.
− Como assim?
− Eu sou uma máquina de pinball.
− Ah...
Ah?
− Tem que apertar os botões certos na hora certa pra ganhar?
Sim!
− Sim! Meu deus, você entendeu.
− Entendi.
− Quer casar comigo?
− Que horas?
− Agora.
− Beleza.

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