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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O ELEFANTE

Às árvores pintadas não caem as folhas, diz o narrador intrometido de A Viagem do Elefante, romance de José Saramago, e que talvez seja uma demonstração elementar daquilo que, em tempos distantes, as más línguas, digo, as deliciosas línguas, chamavam de o canto do cisne, a antevisão da finitude da vida, o último degrau na direção da biblioteca eterna (como gostava de brincar o Jorge Luis Borges) ou do encontro com a indesejada das gentes (como gostava de brincar o Manuel Bandeira).

Talvez seja pouco alvissareiro mencionar esse assunto, visto que o português já nos deixou e antes dessa derradeira aventura perpetuou um livro ruim, Caim, mas fazer o quê? Daqueles a quem admiramos sempre há esperança de poder arrancar da cornucópia criativa um novo manancial, aquele que somente conseguimos encontrar quando passeamos no bosque da ficção, água límpida a escorrer pelo riachinho na direção exata de nossa sede, outras trezentas ou quatrocentas páginas em que a beleza estará eternizada como resistência contra a desintegração do intelecto ou da vida, o mundo que se desfaz por entre os dedos como farelos, embora a vida e a morte sejam a mesma coisa ou coisa nenhuma. De qualquer forma, creio ser preferível pensar nele, Saramago, vivo, cheio de energia, a escrever livros bonitos como A Viagem do Elefante, último ato de resistência de quem está cansado de ver diariamente a insensatez humana, exemplo mais do que expressivo da paisagem vista do alto do Himalaia.

Às árvores pintadas não caem as folhas, diz o inverossímil narrador, pouco preocupado em produzir um trompe-l’oeil, ou melhor, um curto-circuito no fluxo narrativo, o absurdo se instalando como ponto de inflexão para a cena, o inútil deslocar de um elefante pela Europa, consequência tola dos capricho da coroa portuguesa, que ofertou o animal ao arquiduque de Áustria. Paradoxalmente, algumas folhas caem, como metáforas das páginas pintadas com tinta e que, de uma forma ou de outra, compõem a narrativa, o livro aberto nas nossas mãos, forma moderna e modernosa com que o leitor compartilha dessa aventura, a viagem do elefante, glorioso paquiderme que poucos conhecem ao vivo e em cores, o normal é vê-los em gravuras ou em filmes ou então, gloriosa exceção, em uma dessas poucas e rápidas visitas ao zoológico, as feras em jaulas, isoladas de uma vida que poderia ter sido e que não foi, como diria, outra vez, o Manuel Bandeira, esse pescador de ilusões, que elaborou toda uma fauna, mas, dói constatar essa desgraça poética, falta-lhe um elefante em Pasárgada, lá onde ele, Bandeira hasteada sobre a imensidão humana, era amigo do rei.

Pois é, quem andou a escrever, em terras tupiniquins, sobre essas massas imensas e brutas, que provavelmente seriam mais felizes se continuassem vivendo na savana africana ou nas lonjuras de Índia, foi o Carlos Drummond de Andrade, um daqueles poema que as vezes pesam sobre os ombros dos estudantes secundaristas, amostra inevitável de um ensino pouco preocupado com o exercício do livre arbítrio na leitura e que prefere impor um gosto, uma estética, afinal de contas quem é que leva em conta as preferências do povo, essa gente acostumada a se curvar ao catálogo do refinamento aristocrático da insuperável perversidade que nos oprime e redime a cada instante, seja com elefantes ou com os cassetetes policiais?

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirada a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.


Eis a primeira estrofe do poema, forma criativa e lúcida de construir e desconstruir esse elefante em que amo disfarçar-me, como diz o poeta umas duas páginas depois em contracanto com o Fernando Pessoa, esse heterônimo fingidor, que finge que é dor a dor que finge, ex-finge, esfinge, o segredo talvez esteja em perceber que ao fim e ao cabo,

A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.


E se isso não bastar, pois, como constata o narrador de A viagem do Elefante, Somos, cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades, então há que se reconhecer que a solução do enigma talvez seja mesma o que prenuncia o último verso do poema do Drummond de Andrade: Amanhã recomeço.

Infelizmente, o elefante que é conduzido por Subhro (mas que, no meio da narrativa, foi denominado Fritz por ordens de Sua Majestade, o arquiduque Maximiliano, que considerava impronunciável o nome com que o cornaca recebeu ao nascer) não pode ser desmontado e colocado em uma caixa ao final do dia, como um brinquedo ad hoc. O elefante, levando o cornaca em seu dorso, precisa continuar sua esfalfante caminhada na direção das tirolesas terras geladas, bem longe de Índia e Portugal. É preciso continuar a viagem, inclusive se ajoelhando diante da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, que vive sonhando com milagres, forma sobrenatural de recuperar o poder que um dia fez a glória do Vaticano, mas que há muito entrou pelo cano, os tempos e a moral são outros, ninguém mais está interessado em correr perigo roubando vinho doce nas sacristias: E então é provável que algum dos que ali vão reconheça, finalmente, que o pobre elefante não passa de um cúmplice inocente neste grotesco episódio da história contabilística da igreja e que o cornaca não é mais do que um produto insignificante dos corrompidos tempos que nos calharam viver. Adeus, mundo, cada vez a pior.

É preciso continuar a viagem, um pé diante do outro, toneladas se deslocando pelo chão sem fim, como se fossem ondas que mergulham na direção da praia, o desejo sempre frustrado de que acabe o suplício. Como o nome do elefante não é Sísifo, um dia, depois de muito tempo, diante do desconhecido, uma festa antecipa que a viagem terminou, Viena é o novo sinônimo de lar, a Índia se tornou apenas um retrato dolorido, colorido, na parede, ou, em uma outra versão, esta mais prosaica, portanto mais passional, toda viagem, mesmo quando as folhas caem dos quadros, é mais bonita que a [história] de Robinson Crusoé.

José Saramago e Jorge Amado, comentando dias que nunca mais retornarão.

2 comentários:

  1. Saramago, ficará para sempre em nós, nem sempre perfeito, mas um grande marco.

    Um abraço
    oa.s

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  2. Concordo: nem sempre perfeito, mas enorme o tempo todo!

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