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terça-feira, 1 de novembro de 2011

VAMPIRIZANDO O VAMPIRO

O mundo literário brasileiro, como comprova um artigo de Flora Süssekind, A crítica como papel de bala, detesta polêmicas, prefere a calmaria. Nos últimos séculos, houve, aqui e ali, algumas trocas de insultos, rusgas, discordâncias; mas, na média, imperam os tapinhas nas costas e os sorrisos festivos. Todos são amigos de todos e ninguém denigre (em público) o trabalho alheio. Somos cordiais, amáveis, carinhosos.

Somos? Talvez. O escritor, crítico literário e professor universitário Miguel Sanchez Neto discorda. O romance Chá das cinco com o vampiro foi o pretexto que ele encontrou para acertar contas com o mundo literário paranaense.

Nas primeiras páginas, uma descoberta desconcertante: Dalton Trevisan, também conhecido como o vampiro de Curitiba, detesta sangue e adora chocolate – a imagem de filetes de cacau escorrendo pelos caninos do Drácula brasileiro é, talvez, a melhor piada, entre as tantas que estão esparramadas em um livro sem graça. Não necessariamente desgraçado, apenas amargo. Há quem goste.

Fundindo memória e ficção, confundindo o real e o imaginário, sem saber se escreveu biografia ou romance, Miguel Sanchez Neto resolveu publicar o livro que muita gente acreditava tratar-se de uma lenda literária. Utilizando-se de um axioma de Aaron Ninzowitsch, o célebre campeão de xadrez, a ameaça é mais forte do que a sua execução, durante algum tempo a alegria de Sanchez Neto foi causar insônia nos outros. Agora, abertas as portas do castelo mal-assombrado, o que parecia desagradável revelou-se pesadelo.

Construído com um misto de bildungsroman (romance de formação) e roman à clef (formula utilizada por quem quer tratar de questões pessoais utilizando nomes fictícios para acontecimentos e/ou pessoas reais), cerca de um terço de Chá das cinco com o vampiro está centrado na amizade que Roberto (Beto) Nunes, digo, Miguel Sanchez Neto, cultivou com Geraldo Trentini, digo, Dalton Trevisan. O segundo terço se ocupa do esforço do rapaz talentoso, que, para vencer na vida, precisa ir morar na capital. No último segmento, breve descrição da vida literária em Curitiba.

Sob o ponto de vista da construção narrativa, o romance está dividido em dezenas de capítulos, onde avanços e recuos no fluxo temporal contribuem para a dinâmica do texto. Quem contou diz que o recurso foi utilizado 41 vezes. Quem apenas leu o texto diz que é muito esforço para pouco resultado.

Ciente de que o mundo em que vivemos, a sociedade do espetáculo, como gostava de dizer Guy Debord, tem especial preferência por fofoca, ingratidão, maledicência, vida pessoal mal resolvida, Miguel Sanchez Neto, ao escrever o romance, não economizou nesses ingredientes. Depois, jogou tudo em um caldeirão fervente e serviu a gororoba para a plebe ignara como se fosse haute cuisine. Nenhuma novidade, o mundo literário está cheio de... deveria escrever “charlatões”, não vou, prefiro usar outro adjetivo: espertos. Afinal, vampirizar o vampiro é, no mínimo, uma ironia interessante.

De qualquer forma, somando as qualidades e diminuindo os defeitos, o texto não passa de uma metáfora banal desses joguinhos perversos protagonizados por adolescentes que, em ritmo Gossip girls, adoram falar mal uns dos outros, fazer intrigas e se meter na vida alheia. Se fosse criado no formato multimídia, provavelmente o romance teria link para vídeos escabrosos postados no You Tube.

O romance de Miguel Sanchez Neto é fluído, possui qualidades e, embora pareça paradoxal, é fácil de ser esquecido. Extraída a presença (e o entorno) de Dalton Trevisan, o texto resulta vazio, sem propósito, inclusive porque a Literatura, com “L” maiúsculo!, está aquém da descrição de picuínhas provincianas. Infelizmente, é exatamente por isso, pelo ressentimento e pelo desfile das vaidades, que Chá das cinco com o vampiro jamais acumulará poeira nas estantes. Se depender daqueles que estão retratados no livro, o texto há-de ser queimado em praça pública – o corpo do autor fazendo companhia para 285 páginas de puro veneno.

Valério Chaves, Valter Marcondes, Orlando Capote, K, Uílcon Branco e Antonio Akel são as máscaras onde o autor escondeu Valêncio Xavier, Wilson Martins, Fábio Campana, José Castelo, Wilson Bueno e Jamil Snege, respectivamente. Somente o “Turco” recebe palavras agradáveis. Para os demais, o rigor da lei, ou melhor, do julgamento literário de um crítico cítrico que se recusa a compactuar com as panelinhas e, que, do alto de seu inflado ego, acredita poder separar o joio do trigo. Similar a um feitor de escravos, chibata na mão, Miguel Sanchez Neto não perdoa os desafetos. Delata a vaidade daquele que enche a casa de livros e não consegue escrever uma linha de valor. Ridiculariza com o jornalista que se acha escritor experimental por fazer colagens com desenhos e fotos de velhas revistas e escrever sob elas um amontoado de asneiras. Lembra que fulano e beltrano são assíduos frequentadores de saunas homossexuais. Sem saber controlar a fúria, atropela a tudo e a todos, inclusive o garçon da confeitaria Schaffer – prova inequívoca de que a mentalidade neurótica não consegue separar o opressor do oprimido.

No que se refere ao Dalton Trevisan, a diversão é garantida – inclusive porque o Mestre, quando soube da existência do romance, escreveu um poema mal-educado sobre o discípulo (ver abaixo). Algumas das idiossincrasias do “vampiro” causam no leitor aquela compulsão de acidente rodoviário: as imagens são horríveis, mas ninguém consegue desviar o olhar. Distribuindo o elogio de praxe (broinhas de fubá mimoso, que se derretem na boca), comprando enredos para os seus contos (– Já paguei para um rapaz colher as histórias deles) ou contratando alguém para roubar os seus livros da Biblioteca Pública (Um livro só fica pronto quando o autor morre. Até lá, vamos escrevendo e todas as edições anteriores são apenas rascunhos), Trevisan emerge do texto como um velho aflito que odeia fotógrafos, que alimenta vaidades masculinas sonhando com mulheres jovens e que vive saudoso de um passado que, assim como as máquinas de escrever, não pode mais ser recuperado.

Se você despreza o pai, a adolescência fica mais fácil, observa o narrador, quase repetindo aforismo de Jean-Paul Sartre: o homem que escreve para se vingar, sabe muito bem que não se vinga, mas é o desejo de vingança que o faz escrever. Desde os gregos ninguém contesta que alguns filhos desejam a morte do Pai. Como o pai “real” de Beto Nunes é, guardadas as devidas proporções, tão tirânico quanto o pai “simbólico” (Geraldo Trentini), ninguém fica surpreso quando Miguel Sanchez Neto, (procurando se libertar da herança familiar) descreve o declínio físico e moral daquele que se recusou a pronunciar a declaração de amor que todo filho sonha ouvir. Em outras palavras: como essa tolice de carência afetiva, típica de quem é incapaz de resolver problemas psicológicos elementares, não dá direito à medicação tarja preta, Sanchez Neto escreveu e publicou Chá das cinco com o vampiro.

Na parte mais pessoal do romance, pouca coisa se salva. A descrição da vida familiar de Beto Nunes, antes de Curitiba, poderia ficar fora da narrativa, pois pouco acrescenta – principalmente nos trechos em que o narrador (encharcado de constrangedor sentimentalismo suburbano) faz questão de proclamar a sua potência sexual (emulando o estilo dos contos de Dalton Trevisan; contrastando a virilidade do jovem protagonista com a decadência física do velho escritor). Para total constrangimento do leitor, existe, entre tantas páginas supérfluas, uma simulação de cena clássica do filme American pie. Éca!




Hiena papuda necrófila
traveca de araponga louca da meia noite

mente na vírgula mente no pingo do i
mente de bico fechado mente na carta aberta
chorrilho merdoso de intrigas e falsidade

caráter sem jaça de escorpião
filho adotivo espiritual de Caim

delator premiado informa dedura
a desonra, ó cagueta, é o teu butim
fora, traidor de um amigo! rua, olheiro maldito!

no teu coração pesteado
rondam lobos de inveja
na tua alma leprosa
uivam os chacais da infâmia

Judas que se vendeu por trinta lentilhas
uma corda uma figueira seca

se não for à figueira seca
a figueira e o laço da corda
fatal virão logo até você



(poema publicado em 2006, quando Dalton Trevisan descobriu que Miguel Sanchez Neto estava escrevendo o romance Chá das cinco com o vampiro)

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