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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

LITERATURA MUSICAL, MÚSICA LITERÁRIA

(...) faço versos porque não sei fazer música. Foi dessa forma singela, confessional, como se estivesse jogando conversa fora, que Manuel Bandeira, no Itinerário de Pasárgada, colocou em cena um dos problemas mais perturbadores do mundo artístico. (Perturbador no bom sentido, se é que existe essa "enrolação" que chamam de “bom sentido”).

Evidentemente, o mestre não estava a dizer que música e literatura são formas artísticas excludentes. A questão fundamental é de outra ordem. Bandeira era um melômano (expressão antiga, definitivamente fora de moda), basta lembrar as diversas parcerias com Jaime Ovalle, Heitor Villa–Lobos, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone. Além disso, como possuía excelente senso crítico, aceitou o fato que a poesia possui limitações e, em alguns momentos, se distancia do sonho utópico (e, portanto, irrealizável) de conter/compor todos os sentimentos que movem o mundo. Isso não impede, entretanto, que - em algumas dessas tentativas - ocorra uma espécie de milagre, instante em que a poesia se aproxima da música como se quisesse tocá–la (nos dois sentidos). É o que se percebe em alguns versos de John Donne, Jean–Arthur Rimbaud, Anna Akhmatova e Konstantin Kaváfis, por exemplo. No Brasil, a cadência proposta por Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Manoel de Barros e Adélia Prado dispensa a companhia dos sons instrumentais.

Na outra ponta da confusão, a prosa – quando muito – se contenta em retratar as tensões, as brigas que destoam o ensaio de orquestra que compõe o mundo real. E isso significa que – seja para o bem, seja para o mal – ela está, paradoxalmente, mais próxima da música do que a poesia.

Essa tese (tão discutível como qualquer outra) encontra alguns pontos de correspondência quando percebemos que, atualmente, vários músicos estão caminhando na contramão. Por diversas razões e loucuras, muitos daqueles que ganham a vida namorando a grandiosidade sonora estão colocando no papel, ops, na tela do computador, algumas idéias, quase todas em prosa. Sem ligar para a sensação de peixe fora d’água, assentaram a bunda em uma cadeira (como recomendava William Faulkner aos novos escritores) e contaminaram a festa com outro tipo de beleza.

O resultado desse esforço pode ser comprovado nas crônicas de Aldir Blanc – que oscilam do lirismo mais sublime até o escracho total – ou nos diversos romances escritos por Chico Buarque de Hollanda e Tony Bellotto. Outro estranho no ninho, que resolveu invadir o quintal alheio, foi Zeca Baleiro − que sempre aparece na mídia escrita com algum artigo fantástico (no mais impressionante deles, vários anos atrás, deu uma ”taquarada” no aburguesamento de Luciano Hulk).

O engraçado é que a música está quase ausente nos textos dos "novos" escritores (a exceção está nos primeiros romances de Bellotto, onde o protagonista, Remo Bellini, passa grande parte do tempo ouvindo blues).

Para aqueles que gostam da música e literatura, mas não possuem o ouvido apurado de Arthur Nestrovski (autor de Ironias da Modernidade – ensaios sobre literatura e música,1996) ou de José Miguel Wisnik (que escreveu O Som e o Sentido, 1989), o desafio alcança outro nível, mais complexo, menos evidente.

Esse impasse ajuda a explicar o porquê de algumas antologias de contos sobre música terem sido publicadas recentemente. Mais do que ações compensatórias para o ego debilitado daqueles que desafinam tocando triangulo ou caixa de fósforos, esses livros abordam a música como elemento integrado aos relacionamentos humanos.

Mas, por que contos? Será que os romances não são musicais?, alguém há de perguntar, ansioso para esgrimir diante de olhos hereges exemplares de Doutor Fausto e Morte em Veneza (Thomas Mann), O Náufrago (Thomas Bernhard) e Variações Goldman (Bernardo Ajzenberg).

Entre as múltiplas possibilidades de explicação para esses dois fenômenos (a publicação dos livros e dos contos), a resposta talvez esteja no ritmo contemporâneo, rápido, que não permite espaço para o conjunto de sutilezas que integram as sinfonias, por exemplo. Além disso, o conto é uma peça ligeira, sem muitos preconceitos com o andamento (oscila entre o pianíssimo e o allegro vivace).

Particularmente interessantes, como exemplos da interseção entre música e literatura, são as antologias Contos Para Ler Ouvindo Música (organização de Miguel Sanchez Neto, 2005), Aquela canção – 12 contos para 12 músicas (diversos autores, 2005 – acompanha CD), Como se Não Houvesse Amanhã (organização de Henrique Rodrigues, 2010), Essa História Está Diferente (organização de Ronaldo Bressane, 2010) e O Livro Branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bônus track (organização de Henrique Rodrigues, 2012).

Com exceção do primeiro, que é uma espécie de "pot–pourri", ou seja, reúne diversos textos esparsos, escritos ao acaso em diferentes tempos e espaços (Siempre en la barca pra Paquetá, de Aldir Blanc; Noites de Bogart, de Luis Fernando Veríssimo; O moço do saxofone, de Lygia Fagundes Telles; Show Business, de Tony Bellotto), os outros livros estão conectados com uma proposta muito específica: interpretar por meio da ficção algumas canções gravadas no imaginário popular. Mas não é somente isso, há outra diferença: enquanto Aquela canção trabalha sem limitações a música popular brasileira (MPB, para os íntimos), a área de abrangência dos outros dois é diferente.

Como se Não Houvesse Amanhã é uma espécie de passeio sentimental da geração coca–cola, a gurizada que passou a adolescência ouvindo a poesia dissonante daquele que deve ter sido o último Peter Pan brasileiro: Renato Russo. Em busca da aquisição de uma linguagem que dissecasse elementos que, de uma forma ou de outra, estavam interditos, a Legião Urbana cantou músicas com a qualidade de Eduardo e Mônica, Faroeste Caboclo e Pais e Filhos. Tendo como tema esses, digamos, novos clássicos, o livro subverte o contexto que gerou as canções e possibilita, através da ficção, outras leituras – mais enriquecedoras, menos dogmáticas. Particularmente criativas são as narrativas escritas por Daniela Santi (Será), Tatiana Salem Levy (Tempo Perdido) e Nereu Afonso (Ainda é Cedo).

O mesmo propósito está em todas as páginas de Essa História Está Diferente, que virou do avesso a obra de Chico Buarque. Contando com a colaboração de alguns estrangeiros (Mia Couto, Mario Bellatin, Alan Pauls e Rodrigo Fresán), escritores que forneceram um olhar diferenciado para o universo chicobuarquiano, as versões literárias de Ela Faz Cinema (Alan Pauls), As Vitrines (João Gilberto Noll) e Folhetim (Xico Sá) são, para deixar no barato, da mesma qualidade que as canções que as inspiraram.


O imaginário musical, proposto pelos Beatles, se renova e se multiplica nos 19 contos que integram O Livro Branco. Imperdível para aqueles que são fanáticos pela banda inglesa.

Como se estivesse simultaneamente tangendo/agenciando abismos e concertos de câmara, a literatura e a música formam um dupla (sertaneja ou de cordas?) capaz de trabalhar em conjunto para escrever/descrever esses afetos que transformam parte da vida em prazer e alegria. Afinal, como canta Zeca Baleiro, solidão não cura com aspirina.

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